O jurista e jornalista William Tonet foi o convidado do QUINTAS DE DEBATE de 02 de Abril de 2009, realizado no Solar dos Leões, em Benguela. Eis a seguir a sua apresentação na íntegra da sua dissertação feita de improviso, pelo que pedimos as nossas desculpas por eventuais falhas, que pensamos mínimas na transcrição, que esperamos respeitar não só o prelector, como os leitores, sobre um tema de extrema importância neste momento para os angolanos:
As minhas cordiais saudações a todos presentes, agradecendo a OMUNGA por esta oportunidade de estar aqui hoje, diante de tão ilustre plateia para debater um tema tão sensível e importante para cada um dos angolanos:
a Constituição.
Assim, o que vamos fazer aqui hoje é trocar ideias sobre o que é isto de Assembleia Constituinte e poder constituinte, para aprovar a Constituição.
O poder constituinte originário seria aquele imanado de uma revolução, como a que os angolanos conheceram no Alvor de 75 e que eram representados por três movimentos de libertação (denominados, como os representantes legítimos do povo angolano).
Foi essa a denominação que configurou os acordos entre as forças nacionalistas de então: MPLA, UNITA e FNLA e as autoridades portuguesas.
Nessa altura os angolanos poderiam naturalmente fazer emergir (se cumpridos os acordos de Alvor) uma Assembleia e Poder Constituinte. Esse Poder Constituinte era nada mais, nada menos que aquele que teria competência para formular a Lei mãe.
A Lei mãe que iria naturalmente compulsar e unir tudo aquilo que são os verdadeiros sentimentos dos vários povos que compõem Angola, a forma e a visão de como gostaríamos que fosse o nosso país.
Não foi assim, pelos motivos que todos nós conhecemos e tivemos uma Lei Constitucional fruto de todo o ordenamento que vigorava já no período colonial desde que não colidisse com as orientações e o poder revolucionário em curso.
Hoje o que é que efectivamente nós temos?
Pois durante os dez debates (QUINTAS DE DEBATE) já se falou sobre a Lei Constitucional e o que é Constituição, nós vamos pular.
Hoje, enquanto angolanos estamos confrontados com uma nova realidade. E essa realidade é de nós termos que aprovar a nova Constituição de Angola. Até aqui há duas correntes: uma que defende que nós não temos uma Constituição e outra que defende que a própria Lei Constitucional é uma Constituição em si.
Mas o articulado no 159º da actual Lei Constitucional refere-se àquilo que é a sua existência, como sendo uma Lei Constitucional e que devemos ter uma Constituição. Essa Constituição deveria ser aprovada e compactada por uma Assembleia Constituinte.
Então surge este conceito. O que é isto de Assembleia Constituinte? Partindo do pressuposto que poder constituinte é aquele que vai formular, vai fazer a nova Constituição, quer dizer poder constituinte originário, ele dá formatura ao surgimento de um novo Estado.
Nós estaríamos a criar um novo Estado. Então o poder constituinte originário seria aquele que iria compactar a Lei mãe deste novo ente jurídico.
No caso vertente, a transformação da actual Assembleia Nacional em Assembleia Constituinte defrauda as expectativas, não só do projecto de democracia que queremos ver implantado no país, como também o contrato que os angolanos celebraram com os seus entes políticos.
Nós celebrámos um contrato (até aqui) com os poderes constituídos, de realizarmos dois elementos importantes para a normalização da vida política angolana que era a renovação dos mandatos.
O mandato da Assembleia Nacional estava excessivamente prolongado devido à guerra. O mandato do Presidente da República está excessivamente prolongado pelo facto de não se ter concluído as eleições presidenciais (a 2.ª volta) e também pela guerra.
Com essa situação, os angolanos decidiram que o melhor caminho para a normalidade institucional, a normalidade democrática, seria a renovação dos mandatos legislativo e presidencial. Foi este o acordo. Foi este o contrato que os ente político-partidários fizeram com a maioria dos angolanos eleitores.
Nós não ouvimos, nem vimos, durante a campanha legislativa de 2008, nenhum partido político apresentar uma proposta ou bandeira eleitoral sobre a Constituição ou a reforma constitucional. Ninguém foi, por exemplo, à minha sanzala, para lá de prometer a construção de uma escola, de um posto médico, que queria, também, o voto porque tinha objectivos (se ganhasse as eleições) de reformular a actual Lei Constitucional ou aprovar a Constituição.
Não tendo sido assim, podemos entender que o actual processo de reforma (para aprovação) da Constituição de Angola, está ferido de honestidade política e de legitimidade. Porque todos nós deveríamos saber que um órgão cuja função é de fiscalizar e fazer as leis, vai também agora tratar da Constituição, na auto-dualidade de Assembleia Constituinte. E o risco é que num quadro destes, a Constituição que é um instrumento bastante importante para a vida de um país, pode ter uma carga política excessiva e ser um instrumento que não cubra todos os angolanos.
As constituições tendem a ser instrumentos virados para o futuro. Nunca se deve fazer uma lei tão sensível, tão importante para o país, tendo em conta uma visão maioritária de um partido, num contexto que pode determinar a sua orientação.
E é aí que surge a pergunta. Como surgem as assembleias constituintes?
Numa situação de normalidade, imaginemos que tivessem proposto esta reforma constitucional, nós teríamos primeiro (como fundamento jurídico) de eleger uma Assembleia Constituinte, quer dizer, teríamos elementos de todo o país, uns ligados aos partidos políticos, outros não, que seriam eleitos para fazer, reformular e incutir todos os novos sentires e anseios dos povos de Angola no futuro texto constitucional.
A normalidade jurídica dá uma vigência bastante curta às assembleias constituintes, o que não é o caso em tela. Quando temos uma assembleia constituinte, estes cidadãos vão compulsar aquilo que são os sentimentos de todas as franjas, vão recolher opiniões, vão traçar as linhas conformadoras daquilo que serão as cláusulas de base que nenhum governo poderá ousar alterar a seu belo prazer, porque na sua formação ele viu-se representado, todos se viram representados. Este é o fundamento de todas as constituições democráticas!
Temos, por exemplo, uma Constituição bastante curta e que é o símbolo, o exemplo e a referência constitucional do mundo; a Constituição dos Estados Unidos da América. Ela tem clausulas que são inalteráveis, perduram no tempo, e quando surgem situações que exigem que se adoptem clausulas que sejam encostadas à própria Constituição, faz-se isso com a eleição por cidadãos dum Estado que vão buscar os votos de outro Estado, conseguem uma maioria, regulamentada, para fazer passar no Congresso federal as emendas.
A Constituição dos Estados Unidos, sendo uma Constituição bastante pequena, ela tem uma série de emendas, e há emendas que não são aplicáveis em determinados Estados, porque esses Estados não foram partícipes na sua aprovação ou negaram-se a aceitar as cláusulas inseridas em dada emenda e porquê?
Vamos a um exemplo do caso angolano.
O velho Longonjo na profundidade do Luvemba não está de acordo que ele não se sinta reflectido na Constituição por não saber falar português. Ora, quando ele vê o texto constitucional, em que elege-se a língua portuguesa como a língua mãe de todos os povos de constelação Bantu, que habitam o território e não a falam, mas é ela que regula tudo entre as instituições do Estado e os cidadãos. Com essa discriminação de não reconhecimento por parte do Estado, sobre as línguas angolanas, mas de uma estrangeira, na sua província, região, ou Estado, por exemplo, ele poderia rejeitar a introdução desse clausulado, através da Assembleia legislativa da sua região, sob argumento de as línguas angolanas como o Umbundu e o Kimbundu serem as línguas oficiais, para lá do português, enquanto língua estrangeira representativa. Daí que, em países como Angola onde confluem nos limites do seu território vários povos de culturas, tradições e línguas diferentes se possa assacar a idiossincrasia de cada uma dessas verdadeiras cidadanias.
Mas temos ainda de pensar o que pensa o velho Dembo, lá na sua buala em Buco Zau, sobre o adultério? Ele pode pensar diferentemente do homem de Malange, do Cunene e do Huambo. Essa preocupação deve fazer com que o homem da profundidade de Cabinda, possa estar representado numa Assembleia Constituinte, tal como o do Cunene, para haver o cruzamento dos interesses e das sensibilidades porque depois a lei não poderá ferir, nem entrar em conflito com aquilo que é a cultura, os costumes, os usos dos povos. É aí que a Assembleia Constituinte deve salvaguardar-se, revestindo -se de legitimidade à nascença, salvaguardando conflitos no futuro.
Nós, em Angola, poderemos correr o risco, e oxalá que assim não seja, de se não fizermos um texto constitucional suficientemente humilde, suficientemente abrangente, democrático e sensível aos usos e costumes dos angolanos, andar ao sabor do vento a renovar a Constituição.
Hoje há um partido político que tem a maioria e faz aprovar a Constituição, ora, mas se os outros da minoria não se revirem nessa Constituição, essa passará a ser a Constituição dos da maioria. Não da maioria dos angolanos, mas dos da maioria parlamentar. Essa maioria que capitalizou para o quadriénio vai então poder fazer vingar o que é a sua visão sobre o país durante este período de vigência. Mas se se alterar o quadro político na vigência da democracia, um outro partido, também, pode ter a apetência, logo que chegue ao poder de mudar a Constituição. Esta a gravidade.
Assim, devemos pensar em duas coisas quando estivermos perante a existência de uma Assembleia Constituinte. Porque ela tem realmente força. Os actuais deputados, à actual Assembleia Nacional e da Comissão Constitucional, no rigor jurídico, são ilegítimos, mas na circunstância em que o país vive, deu-se-lhes uma prerrogativa de legitimidade. Resta-nos agora saber se essa prerrogativa de legitimidade vai conseguir traduzir aquilo que são os sentimentos dos angolanos.
E mais, a eficácia dessa Assembleia Constituinte seria muito melhor se nós pudéssemos efectivamente contar com ela a partir do pressuposto de estarmos aqui reunidos porque o OMUNGA traz-nos todas as quintas-feiras, para debitarmos as nossas contribuições. E a pergunta é: onde é que essas contribuições vão parar?”. O que cada um de nós contribui, vai aonde e como?”
Quando estamos perante uma Assembleia Constituinte derivada que visa reformar a actual Lei Constitucional ou fazer aprovar uma Constituição, teríamos que partir de dois pilares básicos. O primeiro seria: como não houve honestidade intelectual, durante o período eleitoral de que eles se converteriam em Assembleia Constituinte, e não só em Assembleia Nacional, deputados eleitos para renovar os seus mandatos e trazer a normalidade constitucional, deveriam mostrar-nos um draft, que definiria os termos da discussão e aí todos saberíamos como contribuir. Por outro lado a honestidade intelectual dos nossos políticos devia também levá-los a respeitar os contribuintes que foram igualmente eleitores.
Cada um de nós contribuiu com dinheiro, milhões de dólares, para que durante mais de dois anos, deputados da antiga Assembleia Nacional pudessem estar fechados e a trabalhar sobre um projecto de Constituição. Ora, este projecto existe! Tendo o país gasto tanto dinheiro e não tendo sido aprovadas as linhas desta nova Constituição, o que é que se vai fazer com este documento? Seria importante que nesta hora os próprios deputados com base nas insuficiências, mas na necessidade de termos de aprovar já e agora uma nova Constituição, dissessem que iriam partir daquele trabalho que já está feito e o povo poderia então contribuir sobre aquela base.
Neste caso, como Assembleia Constituinte derivada com um Poder Constituinte derivado, iriam primeiro publicitar ao máximo aquilo que foi o trabalho anterior e segundo, disciplinar todas as contribuições tendentes a enriquecer o texto constitucional no prelo.
No Direito temos várias escolas, existindo aqueles que defendem a escola europeia, enquanto outros elegem a americana. Ambas são bastante fortes no domínio do constitucionalismo mas depois, cada um tem de se colocar na posição suprema em relação à visão que tem sobre a realidade em que vão assentar essas constituições. É importante saber onde nós estamos e quem nós somos. Eu sou um africano! Eu sou Bantu! A minha formação académica tem 4, 5, 10 anos de formatação da visão ocidental. É preciso que eu consiga traduzir os ensinamentos e adaptá-los á minha realidade enquanto africano e enquanto Bantu. E eu penso que a Assembleia Constituinte deveria enfocar elementos fundamentais que já não fazem parte do actual texto da Lei Constitucional e poderemos correr o risco de não os ver reflectidos na futura Constituição.
Se todos nós rememorarmos e temos aqui pessoas de cabelo branco, pessoas que passaram as duas fronteiras: a colonial e a da utopia da libertação revolucionária. Os que nasceram já na fronteira revolucionária, têm poucas comparações, mas quem nasceu antes, tinha um sonho. E o sonho de todo o angolano autóctone (aquele que levou e inspirou a luta de libertação), foi a terra. Sermos livres, sermos donos da nossa terra.
Ora, a actual Lei Constitucional ainda não nos devolveu a terra que nos foi tirada pela colonização. E isso tem muito a ver com aqueles fazedores da Justiça, que vezes sem conta apostam só na visão ocidental do Direito. E a visão ocidental em relação à terra, e principalmente em relação àqueles povos que se tornaram colonizadores, não mente, é honesta.
Um dos fundamentos principais da colonização é a posse da terra conquistada. Os portugueses quando chegaram aqui, disseram: “Isto tudo é nosso!” Não! Encontraram aqui gente! Mas se eles não dissessem que a terra era deles, não tinha razão de ser o colonialismo, porque não teriam nada! E todos sabemos que os pressupostos fundamentais da colonização são a posse da terra do povo colonizado.
O governo e a Assembleia Nacional têm de devolver a terra a cada um de nós, porque cada um de nós tem o seu cordão umbilical enterrado no seu pedaço de terra. E a actual Constituição diz que a terra é originariamente do Estado. Se é originariamente do Estado, a velha N'ganlula que desde o tempo colonial, porque o colono não chegou na sua sanzala, tinha 5 hectares de terra, pode a qualquer momento, em função do ordenamento actual ser despojada. E agora até é muito mais simples! Quem estiver nos Estados Unidos ou em Portugal, acessa o Google e vê uma terra fértil aqui na planície da Ganda, solicita e é-lhe concedida.
Mas a terra, confiscada, por exemplo, é daquele senhor autóctone, que está ali atrás na quarta fila, que sempre pensou ser dele (o bisavô, o avô já lá viviam). Não! Com esta formulação, o Estado pode dizer que o estrangeiro ou outro senhor fica com a terra e sem fazer a compensação, sendo esta (compensação) discricionária, quer dizer, não depende de uma negociação prévia com quem em dado momento teve a posse da terra e poderia utilizar o usucapião, retirado do Código Civil português, com vigência exclusiva, nas antigas colónias e que o actual regime mantém, como se ainda não tivéssemos proclamado a independência. Por isso é importante que a nova Assembleia Nacional, que se transformou em Assembleia Constituinte, tivesse em conta esta sensibilidade.
Por outro lado, seria bom, também, que os próprios deputados tivessem em linha de conta, que nós somos o conjunto de uma unidade de vários povos e nações. Não vale a pena ficarmos arreigados ao refrão político de que Angola é um só povo e uma só nação. Não!
Não somos mesmo! Já não há possibilidade de sermos ainda que tenhamos uma só língua. Nós somos o conjunto de vários povos e de várias nações.
E se nós não aprendermos a respeitar isto, se as pessoas que fizerem permanentemente as leis não tiverem essa noção de como está o nosso cordão umbilical, teremos sempre leis voltadas ao favorecimento de outros. E teremos sempre ordenamentos instáveis (de não estabilidade). As leis tendem a estabilizar, tendem a regular, não o contrário.
É importante que a actual Assembleia Constituinte tenha visão sobre aquilo que os angolanos pensam sobre a terra. É verdade que há alguns que não gostam de se sentirem africanos e, até dizem que nós somos diferentes de outros povos de África.
Podemos ser diferentes em alguns costumes, mas enquanto tivermos a mesma constelação Bantu, somos africanos e devemos ter orgulho de sermos africanos sempre e não oportunisticamente e casuisticamente, quando convém a alguns políticos.
Seria utopia, neste processo, querermos todos participar. Não! Nós, na formação dos Estados, delegamos parte do nosso poder ao ente superior, esta figura que não tem contornos visíveis, mas todos sabermos ser o Estado. O Estado é o quê?! O Estado não se pega, não é nada palpável, mas o Estado é essa configuração suprema que nós delegamos poderes para com o governo gerirem o nosso território.
As línguas angolanas (eu penso) são extremamente importantes. As línguas fundamentais do nossos povos. Eu conheci um senhor que é dos mais ricos deste país, no Cunene, o velho Tchilombele que tem 2.000 (duas mil) cabeças de gado. Para ser rico, criador de gado, basta ter 100 cabeças, mas ele com 2000 é pobre! Porque a actual Lei Constitucional o discrimina de manhã até à noite. Como ele não sabe falar português, ele não pode ter acesso a crédito bancário, por não ter um papel de propriedade da terra onde tem o seu gado (é uma terra ancestral, uma terra de história, todo o mundo sabe que é dele, todo o mundo sabe que ele tem gado), mas porque as instituições não aceitam, não redigem, nem falam Yaneca-Umbe, ele não tem o registo do gado e não pode acessar ao crédito bancário.
Mas quem tem 10 cabeças de gado, tem o mínimo de formação, fala português, que é língua estrangeira, mas é a oficial, tem o papel de uma empresa, pode obter ao crédito bancário.
Mas ao outro, nem mesmo para a compra de vacinas para o seu gado, consegue crédito bancário, porque nenhum banco, aceita dialogar ou negociar com um autóctone (um angolano que não deixa dúvidas) que tem os usos e os costumes de cá, apesar de estar instalado na sua terra, mesmo às vezes, com o rótulo de ser nacional. Tudo porque uma lei, discriminatória, impede os bancos de fazerem operações nas línguas dos angolanos.
A Assembleia Constituinte deveria ver e rever essa situação. Então, nós diríamos que as línguas angolanas faladas em Angola (como acontece noutros países e temos o exemplo da África do Sul), que são o Umbundu, o Kimbundu, o Kicongo, o Kwanhama, o N'ganguela, o Fiote, o Tchokwe, o Yaneca-Umbe e a dos Koi San, como as mais representativas devem vigorar na Constituição.
Não podemos continuar a descriminar pela língua os angolanos! Veja-se que, todos os anos, os relatórios que nós temos do Ministério da Educação, o índice de reprovação q
ue nos é apresentado mais elevado, é o do interior. Será que as nossas crianças do interior pensam menos que as crianças urbanas? Ou à partida estamos a descriminá-las? O meu sobrinho, filho do meu irmão que nunca quis sair da nossa sanzala, e que se o meu irmão morrer é meu filho, desde que nasceu até à idade de ir p’rá escola (são seis anos), sonha, fala em Umbundu e quando vai para a escola é confrontada forçosamente, com a obrigatoriedade de falar português. Este é um grande choque. Não é possível, nestas condições, termos um bom aproveitamento dessa criança! Até porque, se nós formos ao censo, o português só é falado por 25 a 30% dos angolanos.
Seria fundamental que com a introdução das novas línguas no texto constitucional, os primeiros anos de escolaridade fossem dados na língua materna. Quem está na bifurcação sulana, aprende umbundu e pode ter outra de opção. Quem está no norte, tem entrar na escola a falar o kikongo nos primeiros anos e depois ter um ano de escolaridade de transição do kikongo para o português. Assim deveria ser, porque se eu for aprender inglês ou francês, faço um estágio para aprender essas línguas.
A nossa Constituição e os nossos representantes numa Assembleia Constituinte deveriam rever isso! Penso ser extremamente importante, mas a Assembleia Constituinte deve fazer também com que a nobreza do conhecimento dos seus integrantes seja capaz de salvaguardar as minorias angolanas que tendem a extinguir-se. O primeiro povo angolano, aquele que nos recebeu quase a todos, são os Koi San (ou mais comummente os Bosquimanes). É preciso que o texto constitucional salvaguarde a existência e a reprodução de uma espécie humana em extinção. Ao longo dos séculos, nós fomos conhecendo não só a extinção de línguas, de hábitos, de culturas, mas também de povos. Hoje, os verdadeiros habitantes das Américas são uma demonstração quase folclórica. Vamos à Austrália, os aborígenes servem para recreação dos estrangeiros. Foram confinados à discriminação e ao fundo do quintal no seu próprio país. É aí que cada um de nós pode emprestar a sua contribuição, fazendo com que os integrantes da Assembleia Constituinte que estão reunidos numa Comissão Constitucional, possam ter esta sensibilidade. A sensibilidade de chamar para o Direito a necessidade de salvaguarda no texto jurídico-constitucional de elementos que são extremamente importantes para a pacificação dos próprios angolanos, se reverem na sua própria terra.
Os angolanos não querem uma Lei Constitucional próxima da de ninguém. Querem uma Lei Constitucional próxima deles mesmos. É isso que devemos perseguir. As novas contribuições, penso que devem ser viradas para este objectivo. Porquê que nós não nos unimos para evitar que os bosquimanes desapareçam neste século, no nosso país? É preciso levar condições lá onde eles estão, tornar-lhes sedentários. E temos experiências válidas, na Namíbia, na África do Sul, na Zâmbia. Esta faixa ocupada com estes povos tem este condão. É esta e outras reflexões que nós nos devemos propor (todos), por ter a ver com a estabilidade ou instabilidade.
A actual Assembleia Constituinte não pode estar indiferente àquilo que está a passar-se na Guiné-Bissau. A Guiné-Bissau está aqui ao lado (não interessa dizer que está lá longe). A realidade pode-se transpor para aqui, rapidamente. A instabilidade da Guiné-Bissau é fruto de uma má Constituição. De uma Constituição que olhou só para um partido. Que visou o PAIGC, porque o PAIGC acha que o PAIGC é o povo guineense e o povo guineense é o PAIGC. Não é verdade! Mesmo quando acontece isso, nem todos podem pensar da mesma forma. Aliás, “numa barriga nem todos os filhos pensam da mesma forma”. Então, é preciso que o país se acautele para evitar o retorno a conflitos.
Quem começa uma guerra não é o gatilho. Quem começa a guerra também não é o povo. Quem começa a guerra são pessoas que têm conhecimentos e formação académica e (porque em determinadas alturas se sentem descriminados) depois vão buscar aquelas bolsas populares que também se sentem discriminadas para aderirem ao seu projecto de contestação. Temos de tudo fazer para impedir a contestação bélica.
Era importante que todos nós pudéssemos contribuir dentro desta visão. Eu creio que a Assembleia Constituinte (que deveria ser eleita com este mandato) deveria respeitar aquilo que são os vários pensamentos dos povos Bantu deste país. Os autóctones devem-se rever na futura Constituição. Nós temos articulados e visões dos povos que a Constituição deveria salvaguardar.
O próprio Código da Família tem um articulado que é atentado contra os povos de Angola, contra os povos Bantus, contra os povos africanos. Uma das maiores riquezas de África que muitas vezes se confunde com a nossa ingenuidade é a solidariedade intra-familiar. Isto aqui ainda se preserva e, o filho do meu irmão é meu filho. Temos no código da família, por exemplo, um articulado que permite que eu possa casar (ao abrigo desta lei) com a filha do meu irmão, que é minha filha. Ora, a Assembleia Constituinte deve integrar as várias sensibilidades dos povos de um determinado país, justamente para acautelar isto. Quer dizer, se estiver salvaguardado na lei mãe, uma lei ordinária já não pode (naturalmente) ser aplicada dessa forma. Mas se for omissa a lei mãe, então teremos estes problemas.
Por outro lado, ultimamente vemos a discussão de aceitarmos ou não a poligamia. É uma discussão que não pode ficar reduzida a alguns senhores instalados em Luanda. Quer dizer, aquele que acha que o conceito de família africana é só de uma mulher e um homem, tem legitimidade e todos nós devemos respeitar, mas aqueles que acham que as famílias podem ser formadas por um homem e mais de uma mulher, também devem ser respeitados. Agora a lei deve regular esse exercício em defesa de quem? Em defesa dos filhos. Nós aqui temos vários casos. Aqui em Benguela o mais emblemático é o do velho Norton. Um homem que veio, aculturou-se, ficou e adoptou a nossa cultura. Ele vivia com mais de três mulheres todas no mesmo quintal e transformou os filhos de várias mães em filhos de cada uma das suas esposas. Porque crescendo no mesmo quintal, reunindo-se, sabendo quem é o pai, tem-se uma família unida e estruturada. Ele tem filhos do até na Austrália e todos reconhecem essa paternidade. Há discussões que a nossa lei tem de facto de preservar, enquanto parte da cultura dos povos de Angola. E não vale a pena dizer que há povos puritanos. Meus senhores, esta ladainha de haver povos no mundo que só têm uma mulher, é uma conversa muito bonita. Todos nós gostamos, porque reduz em tempo de crise (até) os gastos. Ter ma mulher é bom é salutar, se calhar porque eu só faço gastos numa casa, mas não há povos puritanos.
No Estados Unidos, em que em muitos Estados se combate a poligamia, temos lá a sede da poligamia, meus senhores. Alguns de vocês já ouviu falar dos mórmons. Eles são uma seita religiosa americana, com um forte ascendente em Laker City, onde se realizaram recentemente as olimpíadas de inverno. Lá existem homens, ainda hoje com 12 mulheres a viver num rancho e no passado houve quem vive-se até com 30! Se fosse em África (ou em Angola), iam dizer: “esse gajo é feiticeiro é maluco.” Mas como é americano é branco dizem: “esse gajo tem uma premeditação fenomenal.” Não! É isso que é preciso respeitar as tradições e culturas dos povos, sem cinismos! Aliás, há uma célebre obra que é “A 27.ª Mulher” que conta de fio a pavio a história dos mórmons. E é nos Estados Unidos! Mas muitos dizem: isto lá não acontece!!
Quanto aos europeus têm outro tipo de poligamia que não a nossa. A poligamia dos europeus resulta por exemplo de um amor profundo que leva-os a gastar 10 milhões numa festa de casamento e 15 dias depois acabou o amor e há separação. Mas isto não é poligamia? Então um tipo que se casa e 15 dias depois, diz que já não ama a mulher, divorcia-se e parte para outra. É o quê?
Eu penso que uma Assembleia Constituinte tem de ter elementos, que pensem Angola de várias formas, por ser impossível pensarmos todos da mesma forma.
Isso porque, voltando ao adultério, em Malange lava-se a honra com sangue, mas na Lunda lava-se com ostracismo, com desprezo e com a devolução dos bens do alambamento. Estamos a falar de duas realidades e ligadas por uma fronteira comum. Isso obriga o legislador a levar em linha de conta o Direito Costumeiro e a forma como o harmonizar com o Direito Positivo, por isso temos de ter bastante cuidado na formulação desta Constituição.
Outra questão que se quer colocar para a esfera da actual Assembleia Nacional (e Assembleia Constituinte) é a prerrogativa de decidir se o Presidente da República deve ser eleito por voto directo, secreto e universal ou voto indirecto (parlamentar). Quando iniciei o debate, disse que não havia honestidade política. Disse-o, porque não nos disseram que a função inicial dos deputados eleitos seria de aprovarem uma Constituição e que poderiam ser violadas as cláusulas fundamentais. Quer dizer, aqueles articulados que introduzidos numa Constituição, não podem ser alterados, salvo se ocorrer uma revolução. Aí, sim emerge um novo poder constituinte originário, revolucionário que vai reformular tudo e fazer surgir um novo ente jurídico, que, por exemplo, em vez de República de Angola, nasce a República Democrática Popular de Angola!!!! Ou a República Democrática de Angola ou a República Socialista de Angola!
Os garantes da lei Constitucional com cunho democrático só a partir de 1992, colocaram a cláusula 159º, que estipula na sua reforma ou aprovação de uma Constituição, que não se podem alterar determinados princípios, sob pena de haver uma inconstitucionalidade.
Quer dizer, se vingar, a eleição indirecta do Presidente da República é inconstitucional e uma traição ao próprio programa político do MPLA de 2008, ainda que acoplada à própria Constituição, porque o artigo 159º diz: “as alterações à Lei Constitucional e a aprovação da Constituição de Angola, tem de respeitar o seguinte:
- A independência, integridade territorial de Angola e a unidade nacional;”
Quer dizer que, em relação a este ponto, ninguém pode dizer-nos agora que estamos sob o julgo colonial de quem está no poder ou “nós estamos a colonizar-vos.” Alterar a integridade territorial de Angola, dizer: “agora Karipande, região do Moxico, faz parte da Zâmbia. E Cabinda já não faz parte de Angola.” Isto está impedido aqui por quem vai fazer a aprovação desta Constituição.
“- Os direitos, as liberdades fundamentais e as garantias dos cidadãos;
- O estado de direito e a democracia pluripartidária;
- O sufrágio universal, directo, secreto e periódico na designação dos titulares efectivos dos órgãos de soberania e do poder local;”
Ora, esta cláusula, impede que se tenha a veleidade de se colocar em discussão, a eventual eleição indirecta do Presidente da República. As constituições não são um fato à medida de uma pessoa. E quando se diz o Presidente da República, não estamos a falar do João, do Manuel, do Joaquim!
Estamos a falar da instituição. É uma instituição! Que a dado momento é ocupada pelo João, pelo Manuel ou o Joaquim! Isto deve ser salvaguardado. Porque devemos procurar estabilidade.
Vejamos o seguinte cenário: Neste momento (até) será pacífico a eleição do Presidente da República por via indirecta. Pode ser pacífico! Não vai acontecer nada nos quatro anos! Porque, felizmente, o presidente do MPLA é o mesmo cidadão que é o Presidente da República. Infelizmente para este cidadão, que é ao mesmo tempo militante “camarada” e presidente do MPLA, é também ao mesmo tempo cidadão e senhor Presidente da República que, por sua vez, encontra no parlamento uma maioria do seu partido. Ora, esta eleição produz-se sem qualquer tipo de conflito, na normalidade.
Não acredito que pela disciplina do voto militante, metade da bancada do MPLA ousasse votar contra a eleição do seu militante que é ao mesmo tempo candidato natural desse partido. Não iria fazer isso. Mas num outro cenário, em que o Presidente da República que é o presidente do MPLA, ganha, e tem um mandato tranquilo de quatro anos, recandidata-se a um novo mandato, depois de 2012, mas o seu partido já não ganha por maioria absoluta as legislativas, ganhas por um outro partido. Teremos um grande problema porque o outro partido poderá não aceitar confirmar um Presidente de outro partido.
Mas teremos ainda um outro problema na designação dos órgãos de soberania. A actual lei constitucional, por exemplo, que está ferida por um acórdão do Tribunal Supremo (daí a importância das emendas de determinadas constituições), diz que o chefe do governo é o primeiro-ministro, mas no caso actual o chefe do governo não é o primeiro-ministro. Nós temos o primeiro-ministro que na realidade é só o primeiro dos ministros, mas não é o primeiro-ministro! O primeiro-ministro chefia uma equipa, mas no nosso caso, com essa alteração, este acórdão do Tribunal Supremo, transferiu para o Presidente da República, as competências da chefia do governo. Por causa dessas más definições, nós já tivemos um conflito constitucional, daí ter dito ser preciso preservar bem as constituições. E muitos de nós, se calhar, não está a dar conta, mas tivemos um grande conflito de interpretação da constituição que levou a que o Presidente da República pedisse clarificação ao “Supremo”, fruto deste conflito, porque naturalmente, as pessoas não terão dado o melhor conselho com base na ciência jurídica. Talvez, e desconfia-se, que houve algumas influências de bajulação política e então adulteraram o texto. Lembrar-se-ão que, depois das eleições, Marcolino José Carlos Moco foi primeiro-ministro de Angola. Moco é membro do MPLA. foi seu secretário-geral, tinha como PR o presidente do seu partido, José Eduardo dos Santos e uma maioria parlamentar. Mas, interpretando a lei, foi desempenhando acções como primeiro-ministro de facto e "de jure". Mas o Presidente, talvez por termos vindo de um regime totalitário, em que a própria natureza do Estado, bifurcava no Presidente da República, que tinha muitas prerrogativas. Mas este conflito de interpretação legal entre Marcolino Moco e o Presidente da República levou que a sua cabeça fosse colocada na guilhotina.
Veja-se como saiu Marcolino Moco, do governo, sendo do partido no poder, onde um segmento desse partido: Movimento Nacional Expontâneo, não representando talvez (e quero acreditar) todo o MPLA, festejou a exoneração do seu “camarada” primeiro-ministro, porque queria interpretar a constituição, com epítetos dos mais baixos possíveis, com uma manifestação em Luanda que chamaram o Carlos Moco de “bailundo fora”, porque o homem quis respeitar a lei.
Daí que todos os integrantes da comissão constitucional e as nossas contribuições devem entender e reflectir o sentimento que cada um de nós carrega fruto do seu berço. A defesa do cordão umbilical de cada um de nós é muito importante. Para que não tenhamos mais conflitos. Para que evitemos que alguém ouse, de novo, conquistar o poder pelas forças das armas.
Podemos e devemos utilizar os recursos legais para alcançar os nossos objectivos e pretensões políticas. Isso só é possível se tivermos leis prendadas, leis fortes, leis que tenham em conta o angolano. Se nós não tivermos leis que visem o angolano, poderemos ver fragilizada a nossa situação e termos imagens tristes e horríveis como aquelas que ocorreram na Guiné Bissau. E porquê? Porque na Guiné o poder está confinado aos militares.
Eu dizia há dias que, o futuro da Guiné passa por um homem e das suas pretensões. Este homem, coincidentemente, enterrou 3 chefes de estado-maior e ele não se beslicou em nenhuma das vezes. É o actual chefe do Estado Maior das Forças Armadas. Hoje chegou ao poder militar, mas a situação na Guiné é instável, continua instável. Os políticos andam a reboque dos militares, que mesmo sendo um poder frágil é o único poder que tem uma certa coesão. Mas na Guiné faz falta uma Polícia.
Eu vejo ali um oficial de polícia. Em momento de crise, a polícia é um contra-peso que pode evitar as pretensões dos militares quererem fazer tudo. Nós não temos polícia na Guiné capaz de ser um contra-peso. A polícia angolana, com os meios que tem, pode ser um contra-peso. Nenhum militar pode ter a veleidade de pensar alterar o quadro constitucional se não contar com a polícia. A polícia é uma força importante de defesa constitucional. Vimos que o Nino Vieira foi esquartejado. As imagens são horríveis. Os braços foram deslocados. Atrasou-se o seu funeral porque teve-se que coser, com linha dupla os próprios membros. A barriga foi toda esquartejada, com golpes profundos, a cabeça rachada quase ao meio. Quer dizer, é muito ódio! É muito ódio inculcado e, nós, os angolanos, com a experiência que temos da guerra que tivemos, temos, na reforma constitucional, a hipótese de esbater recalcamentos. Temos de nos unir através do texto constitucional, ouvindo todas as pessoas, para evitarmos a repetição dessas imagens horríveis. Ainda ontem, depois de perderem duas figuras importantes de Estado, estão agora a ser perseguidos alguns políticos, como foi o caso do ex primeiro-ministro e actual presidente do Tribunal de Contas. Não é possível!
Tenhamos em conta os exemplos dos outros porque, o Kabila pai, morreu também esquartejado e nós dizíamos: “já não vai acontecer mais em África” e agora surge a Guiné-Bissau.
É preciso esbatermos os ódios. É preciso que quando estivermos a fazer textos importantes para a vida dos povos angolanos, tenhamos a sensibilidade de ouvir todos. Não que todos tenhamos de estar presentes (seria um parto impossível), mas é possível fazer um parto, mesmo com dor, que tenha sido precedido de muito amor.
Muito obrigado.