O prelector começou por pedir desculpas pelos vários adiamentos da sua presença no QUINTAS DE DEBATE e avançou:
“Do ponto de vista teórico, não é difícil enquadrar o tema em si, porque a chamada revisão constitucional em situação transicional, aparece como uma adenda ao próprio processo de reconciliação/estabilização de uma sociedade pós conflito. Ou seja, dentro da agenda que um país pós conflito concebe para além do desarmamento dos militares, do enquadramento dos deslocados e refugiados, o processo de reconciliação inclui também a chamada revisão constitucional, cujo fim é o de enquadrar as várias e, às vezes, contendentes visões, numa única carta da nação que vem a ser a constituição. Do ponto de vista teórico não há obstáculos. No entanto, cada contexto é sui generis e então a questão que se coloca é como enquadrar na revisão constitucional as especificidades e visões locais dentro de uma agenda alargada de reconciliação nacional. É muito difícil fazer-se o enquadramento específico e contextual e não há nenhuma sociedade que tenha feito essa transição de uma maneira fácil e simplista. Quanto a Angola, várias perguntas se poderiam colocar, como por exemplo,
n O que pretendemos na pacificação de Angola?
n Que Angola emergiu do conflito? É uma Angola unida ou fragmentada
n Que visão têm as elites ricas da Angola actual e da do futuro?
n Que visão para alguns sectores internacionais?
Podemos inclusive acrescer outras questões subsequentes. Por exemplo, que agenda Angola tem para gerir o passivo do conflito. Os teóricos da área de gestão de sociedades transicionais, quando se referem à pacificação, colocam ênfase na necessidade de um processo de cura, de consertação, de reconstituição participada da pátria, da sociedade, mas de modo renovado. Esta cura, tanto pode ser de feridas decorrentes de uma guerra cruel, quanto de uma política opressiva que cerceou liberdades e diminuiu as pessoas na sua identidade, dignidade e capacidade mostrarem seu ponto de vista, seus desacordos em relação a assuntos de natureza governativa. Ora nós temos mais ou menos os dois ingredientes juntos na nossa história passada. Nós viemos duma guerra e também viemos duma situação em que de forma política e aberta se privavam as liberdades fundamentais em nome de uma ideologia totalitarista e excludente. Tal causou imenso sofrimento cujas feridas levarão tempo e vontade colectiva para sararem. Isto tanto se observou do lado do governo quanto do da rebelião armada. As sequelas desse passado precisam de um tratamento, uma abordagem especial. Agora, que agenda que temos para podermos abordar esse passivo. Para além disso, temos a mesma visão de Angola? Temos de enfrentar o nosso passivo, incluindo preconceitos de pendor colonial, que e manifestam das mais dversas formas.
Que visão de Angola podemos abordar?
Que visão temos de Angola? Que ideia têm de Angola as elites? Os Hanhas? Os habitantes de Lobito? Os sectores internacionais têm também interesses em Angola. Devem ter acabado de ver pela televisão que está-se a criar uma Comissão do Golfo da Guiné porque este tornou-se um eixo estrategicamente importante para o sector de segurança e energias sabendo que o Golfo Pérsico está instável e não pode produzir o petróleo de acordo com a demanda do Ocidente. Nesse sentido, o petróleo do Golfo da Guiné, onde Angola pontifica, começou a ser extremamente importante. Há interesses de grande envergadura a nível internacional que olham para Angola e têm interesses em Angola.
Que Angola temos nós depois do conflito (quer ideológico, quer militar)?
Temos uma Angola unida ou uma Angola fragmentada? Em países pós conflito que vêm de opressão, guerra ou ocupação, etc., existe uma ligação lógica e articulada entre a construção da Nação, o processo de reconciliação e a feitura participada e com a perspectiva de que os que participam nesse processo têm o sentido de pertença da nova Constituição. Qualquer Constituição que saia deste tempo tem que ter um pouco o sentido de construção colectiva para que as pessoas tenham o sentido de pertença. Os cidadãos ao contemplarem a constituição devem exclamar: Tchetu!! Isto é nosso! Isto nos pertence. A feitura duma Constituição é igualmente uma excelente oportunidade de democratização, no sentido de processo participativo, de aprendizado, de caminhada, partilha de visões diferentes e até dissonantes. Para isso, as metas de uma Constituição pós conflito, especialmente designada para gerir o passivo do conflito, da sociedade fragmentada, tem de entusiasmar as pessoas e mobilizá-las. Se não houver o ingrediente de participação, a constituição pode tornar-se em subproduto dos beligerantes e/ou das elites interessadas no poder. A feitura da Constituição é uma oportunidade de galvanizar as vontades das pessoas para criarem uma nova visão de uma nova e renovada sociedade. Inclusive, os cidadãos ajudarm, com sua participação, a redefinir os princípios fundamentais sobre os quais o país se vai reorganizar e funcionar. O princípio fundamentalíssimo que deve reger uma sociedade pós conflito é o primado da lei. Ninguém deve estar acima da lei. Todos são iguais perante a lei. A redistribuição do poder político é outro é um outro princípio pragmático que uma sociedade que elabora uma nova Constituição deve perseguir e prosseguir. Que Angola é que nós temos depois do conflito? Que Angola emergiu depois do conflito? Onde é que nós estamos neste momento? Temos o chamado ciclo do conflito violento. Temos uma fase de pré conflito onde se tem tensões, estruturas de opressão, mecanismos de coarctar as liberdades, etc., etc., exclusão social... O ciclo seguinte está ligado ao conflito violento onde se tem guerra, morte, destruição, ditadura, e depois o pós conflito, onde tens o cessar-fogo, a negociação, o desarmar, a pacificação, a estabilização social, etc., etc. Se não se criam espaços onde se discutam duma forma mais participada, aturada, partilhada, a questão do enquadramento de cada grupo social, tal pode começar um processo em que se engendram novos conflitos, novas dinâmicas de exclusão. Novas dinâmicas de tensão. Especialmente num país rico como o nosso, as desigualdades estruturais começam a ter maior visibiildade e incidência na vida dos cidadãos. Uma vez mobilizadas as comunidades, é preciso partilhar experiências com organizações de impacto internacional. Por exemplo nós, quando elaborarmos a nossa Constituição, temos também que buscar experiências de outras sociedades que passaram pelo mesmo processo. Há grupos muito bem organizados ao nível de África, como por exemplo o CDD que é um centro de abordagem constitucional com sede na Nigéria e na Inglaterra, e que ajuda a capacitar os actores da sociedade civil no processo de participação da elaboração/revisão constitucional.
Participação cidadã e o desafio das heranças do passado.
Existem vários obstáculos à participação política em África, e que podem manifestar-se no momento da elaboração/revisão da constituição. Nesses momentos, as elites que governam têm a tendência de influenciar os resultados, pois estes irão definir a forma de Governo e de Estado a vigorar num determinado país. Existem heranças do patrimonialismo, o governo pessoal, Tem-se alguns Estados liderados por figuras carismáticas, onde alguns assuntos de Estado são geridos como se fossem privados. O clientelismo, a compra de favores, a compra de interesses,... Existe a cultura da arrogância, do pensar que se está acima da lei. Quando se trata desse grupo de privilegiados nem sempre a lei faz sentir a sua mão pesada para os colocar no lugar onde deveriam ficar.
Mas também é verdade que nas sociedades pós conflito, quando termina a violência militar, a cultura da violência não desaparece do dia para a noite. Dilui-se e transforma-se noutras dinâmicas. Talvez menos visíveis, menos violentas também, mas que podem ser perigosas para a própria estabilização gradual da sociedade. Revelam-se essencialmente ao nível económico, cultural, político, etc. É toda essa herança, que nós já nos referimos, das culturas autocráticas e ditatoriais que podem ser empecilho para o desenvolvimento político de qualquer país. Tal atitude não é somente apanágio dos que lideram, mas é pervasiva a certos sectores não estatais, como por exemplo, nos partidos políticos. São elas sequelas de uma cultura geracional que foi passada para a mentalidade das pessoas e elas geriram as suas vidas com essa cultura. E vai levar muito tempo para poder-se erradicar essa cultura. Está a emergir um grande cantor angolano, de nome Yannik (peço perdão se não escrevi correctamente o nome). Este homem tem uma das canções onde, masi ou menos diz que o país está a mudar mas a mentalidade não. De facto, não basta mudar as formas, o exterior, porque a mentalidade permanece ainda não mudou.
As divisões/fragmentações étnico/identitárias
No período pós-conflito, em geral, existe a cessação da violência militar e. Talvez a política, mas devagarinho, os grupos ao reconstituírem suas identidades, encontram-se, às vezes, a construir igualmente conflitos étnico-identitários. Temos sintomas disso, com exemplos do abafado debate sobre o Cunene do Norte e o do Sul, as reclamações de elites Lunda-Tchokwe sobre os Vakakwiza (adventícios, aqueles que não sendo naturais, estão a aproveitar-se das vantagens que a terra oferece) e a lenta construção de uma memória que luta pela autonomia de um “antigo protectorado. Existem na Huíla elites que levantam a discussão se esta província pertence aos Nhanekas ou a outros grupos étnicos. As tendências independentistas em Cabinda são igualmente o culminar de um antigo e lento processo de reclamação étnico-identitária que não foi abordado a tempo. Benguela deve ter igualmente os seus desafios de concertação identitária entre grupos diferentes. Haverá sectores minimalistas que quererão ignorar o assunto. Mas outros tentarão acompanhá-los no seu desenvolvimento pois estes problemas levantados não são causa em si. A causa é mais profunda e deve ser procurada com outros métodos. Quando se olha para o problema do Ruanda, entre hutus e tutsis, o problema não está no ódio tribal. Os antropólogos, os historiadores que conhecem as línguas africanas ensinam-nos verdades profundas. Elas não têm palavras ou expressões de tribo ou raça. A pergunta é: como surgem e se desenvolvem estes problemas de reclamação étnico-identitária? É que quando às vezes há a percepção de que um grupo é privilegiado a despeito doutro, isto pode criar preconceitos que se sedimentam e se vão generalizando. Mas a causa não é só esta. Há várias causas sociais, económicas sobretudo, culturais, de acesso às oportunidades, de tratamento igual ou desigual, que vão agravando as coisas. O debate constitucional não deve ignorar estas realidades. A Constituição tem que estar a reflectir tudo isto! Tem que reflectir a história do povo, os seus medos, os seus receios, as suas aspirações, a visão e a alma da Nação que se quer construir. Uma Constituição tem que ser reintegradora do conjunto e da vontade da maioria mas incluindo a visão das minorias. Podem ser étnicas, rácicas, de grupo, de interesse, etc., etc. Por exemplo, na África do Sul, os homossexuais foram incluídos na abordagem da feitura da nova Constituição. A Constituição deve ser a forma que inclui as visões diversas, as visões diferenciadas e até contraditórias, os credos, as culturas e as interacções que se confrontam positivamente na dinâmica de uma sociedade. Um exemplo disso é o preâmbulo para a nova Constituição iraquiana aprovada em 2005. Como vós sabeis, o Iraque é a antiga Mesopotâmia. Ele começa assim: “Nós, o povo da Mesopotâmia, o berço dos apóstolos e dos profetas, o lugar do repouso dos Imãs (sacerdotes muçulmanos), o berço da civilização, os pioneiros da escrita e a escola da numeração (são eles que inventaram os números). Sobre o nosso solo foi elaborada a primeira lei feita pela mão humana e o pacto mais antigo de justa governação foi celebrado. E sobre o nosso chão, os santos e as fileiras dos profetas rezaram, os filósofos e cientistas elaboraram teorias e os escritores e poetas se elevaram.” Vede, o iraquiano quando lê isto, se revê nisto. Como é que chegaram a esse desenvolvimento? Porque na elaboração da Constituição, apesar de ser um governo contestado (o governo imposto pela coligação liderado pela América é um governo contestado), houve ainda o cuidado de, o terceiro sector (o sector das ONG e das associações), mobilizarem o povo ( o Iraque tem uma das elites mais intelectuais do golfo pérsico), mobilizarem as universidades, os centros do saber, e todo o mundo participou, deu a sua opinião para dar lugar a um texto onde as pessoas se revêm..
O que é preciso para nós angolanos, participarmos da Constituição?
Informação ao povo. Qual é o estado da nossa comunicação social?? Será que o mundombe que está lá no Dombe Grande, a cuidar do seu gado, sabe que foram eleitos os deputados que compõem a comissão constitucional?
O segundo passo é a educação do povo sobre o processo. Para que ele aprenda o significado da Constituição como carta que vai reflectir as vontades, bem como sobre as modalidades de participação
Depois começa o processo de consulta abrangente inclusiva. Deve ser envolvente e não contemplar só as elites do poder político. Todos os grupos socialmente visíveis devem ser envolvidos (as maiorias e as minorias). Para isso, os grupos devem empoderados, capacitados a fim de tomarem parte do processo. Devem ser tidos em conta muito particularmente aqueles que se sentem marginalizados, os excluídos, estigmatizados, todos esses devem ser envolvidos. A sociedade civil tem que se preparar para o efeito. Em relação a Angola, exisem vozes pessimistas de que não adianta participarmos do processo da revisão constitucional, porque o actual parlamento está totalmente dominado pelo partido no poder, e qualquer visão fora deste, não vai passar pela aprovação deste. No entanto, mais do que procurarmjos por êxitos imediatos, deveríamos nos envolver nessa abordagem tendo em vista objectivos a longo prazo.
Nessa senda, vou partilhar convosco a iniciativa que nós tivemos entre 1999 e 2000 até celebrarmos a primeira Jornada Constitucional que foi realizada em Novembro de 2000. Nós ouvimos falar, à luz do protocolo de Bissesse, se tinha formado uma comissão constitucional em 1997 e que estava a preparar as ferramentas da futura constituição, com aprovação dos 27 princípios. Nós que vivíamos na altura o problema da terra nos Gambos, pensámos assim. Que a terra, antes de ser um factor de desenvolvimento, deveria antes ser gerida por uma política. E essa política tem que ser plasmada na Constituição. Temos que contribuir igualmente para que a visão dos Mungambues, (a visão das pessoas que vivem nos Gambos), Mundimbas, os pequenos comerciantes, os Khoi-San, as mulheres, os homens, os pastores, etc., etc. se reflicta nessa Constituição. Por isso mesmo vamos tentar colocar o nosso pé por dentro, antes que os políticos agarrem o espaço público e se assenhorem dele. Começámos a abordar com os mais velhos: “Vai-se fazer uma carta e essa carta vai conter o que é que o Tchokwe pensa, o que é que o Kwanhama pensa, o que é que o Muakavona pensa, o que é que o Mundima pensa, o que é que um comerciante que está na povoação pensa, o que é que um pastor que cuida do seu gado pensa. Então essa carta tem que ter a visão desses todos”. Os velhos disseram: “Vai haver essa carta? Por favor, nós estamos dispostos para sermos escutados porque desde o tempo colonial que nós não somos escutados, aliás quando querem nos escutar é só para criarem-nos problemas. Quando andaram cá a escutar-nos foi quando começou a guerra de 40-42 contra os Mucubais. Vieram para cá fazer inquérito de saber como é que é a nossa relação com o colono e logo a seguir guerra. Depois veio 75 e houve confusão. Depois vieram sul-africanos. Nós nunca fomos escutados sobre a nossa vida, sobre a nossa cultura. Nós estamos disponíveis.” Fizemos uma grande mobilização e para não ficar só com os Gambos, auscultámos comunidades também dentro da cidade, comunidades do Kipungo, da Matala, do Namibe e fomos até ao Cunene recolher também algumas amostras. Fizemos uma pesquisa, para que as pessoas colocassem no papel a sua visão sobre o país, as suas inquietações, os seus receios. Isto tudo colocaram no papel. E para apresentar o resultado dessa contribuição, nós preparámos então a Jornada Constitucional. Começámos a mobilizar sectores dentro do parlamento. Fomos ter com o Sr. Dino Matrosse, conversámos com o Sr. Bornito de Sousa, como o partido no poder, deveria ser mobilizado em primeiro lugar para acompanhar o processo. O Sr. Dino Matrosse prometeu que iria enviar 5 parlamentares do MPLA para irem para lá, para abordarem na Jornada Constitucional. Mas, politicamente estávamos adiantados demais. Houve um sector do MPLA que teve medo. Os cinco deputados do MPLA nunca foram ao Lubango e na véspera da realização da Jornada Constitucional o Ernesto Bartolomeu sai com um comunicado onde mais ou menos dizia que o governo não se revia na Jornada Constitucional do Lubango, porque a recolha de opiniões somente aconteceria depois do rascunho da Constituição estar pronto. Eu estava à frente do écran e comecei a tremer. Os convidados tinham sido todos mobilizados, de todos os partidos políticos. As comunidades mobilizadas. Os autocarros alugados. Os mais velhos, todos, do Cunene, Namibe, Gambos, Kipungo, Matala, da cidade, estavam todos mobilizados. Reunimos de emergência e reflectimos: “O governo não se revê nisso mas não disseram que não iriam apoiar”. Os nossos amigos parlamentares da oposição moveram-se, mobilizaram os seus apoios em Luanda, avisaram o governo provincial da Huila que iam à Jornada Constitucional e este tinha que mobilizar a sua estrutura protocolar para os apoiar. Foi a nossa salvação. Os parlamentares do MPLA não chegaram, mas esteve lá o pessoal do Fpd, PAJOCA, PDP-ANA, FNLA. Quase todos os partidos estiveram lá. O curioso é que a UNITA também não foi. A UNITA quando soube que o partidomaioritário não ia, e sabendo-se que se estava em plena guerra, também não foi. Não imaginam a alegria e o sentimento de alívio que nós tivemos quando se via uma mamã dos Gambos, ou da Huila com os seus atavios sentada lado a lado com a mamã Anália de Vitória Pereira. Não imaginem a alegria que isso nos trouxe. O Dr. Alexandre Sebastião dum lado, o soba dos Gambos do outro. Alguns representantes de algumas ONG mediram a situação e acharam que o ambiente estava. Mas quando viram a delegação que veio de Luanda decidiram também ir. Foi uma experiência interessante, de aventura, mas que nos fez pensar que poderiamos fazer coisas maiores.
Nós vivemos num momento em que estão em curso várias dinâmicas do ponto de vista social e político. As pessoas tinham muitas expectativas antes das eleições legislativas de 2008, e conversando com algumas, dá a entender que a auto estima, a aura e o entusiasmo que tinham pelas eleições está a decrescer. Isto pode ser não muito bom para motivar as comunidades a participar.. Acompanhei há dias um interessante e acalorado debate na Rádio Ecclesia que foi animado pelo Reginaldo Silva, os Drs.Marcolino Moco Fernando Macedo. O Reginaldo Silva dizia claramente que não estava optimista, porque à partida qualquer iniciativa da sociedade civil de fazer parte de um processo de elaboração da Constituição, como acontece em África, o grupo que manda vai dominar o processo constituinte para salvaguardar os seus interesses. Eu concordo com essa perspectiva mas eu que estou ligado com comunidades a quem é preciso transmitir a esperança, devo pensar e agir doutro modo, contribuindo para o exercicio da cidadania que contribua para a mudança a longo prazo. O problema nosso (e ligado um pouco aos partidos políticos), dizia muito bem o Marcolino Moço, é querer investir no poder. Deve-se é investir na abordagem da política a longo prazo. Mesmo que as nossas visões não estiverem reflectidas neste processo constituinte, se nós continuarmos a mobilizar o povo, construímos devagarinho a pedra da participação política. Não vamos ganhar desta vez. Muita coisa que gostaríamos que estivesse contemplada no projecto constituinte não vai estar. Vai acontecer o mesmo que aconteceu com a lei das terras. A centelha que incendiou o processo de abordagem da lei da terra veio dos Gambos. Nós nem tínhamos consciência, nem ideia de que o que estávamos a começar com algum entusiasmo juvenil ia desencadear a reflexão sobre as terras. Mas ainda assim a questão das terras é muito grave em Angola. Aquelas comunidades que não tomaram medidas preventivas naquela altura, hoje têm problemas muito graves de ocupação de suas terras. Também, para o processo constitucional precisamos de rever como é que nós elaboramos os nossos programas de educação cívica para as comunidades. Deveríamos abordar a questão da recuperação da auto estima das comunidades. Deveríamos conceber programas de desenvolvimento educacional informal mas na perspectiva da libertação. Para quê? Para que nós consigamos devagarinho abordar os traumas coloniais e os preconceitos anichados no recesso do nosso subconsciente colectivo.
Por tudo isso temos que começar primeiro a enfrentar o fantasma colonial e pós-colonial que está nas nossas cabeças e que se foi sedimentando. Temos que começar a abordar a cultura do medo que se instalou e que inibe iniciativas e alguns interpretam a necessidade de votar para quem está no poder como salvaguarda de suas vidas e das das suas famílias, mas que não passa da manifestação colectiva da cultura do medo: “é melhor votar no que você conhece. Se você não vota naquele que conhece, você não sabe o que vai acontecer!” Na Huila circularam panfletos a dizer – “cuidado, se você votar no desconhecido, você vota na falta do sal”. Ora a falta de sal se via nos tempos em que havia guerra, em que as populações estavam sitiadas. Essa cultura do medo está connosco. Temos que começar a pensar numa educação libertadora. A sociedade tem que começar a pensar a sério num programa de abordagem dos efeitos pós traumáticos que o conflito deixou. Quem vai ao Kuito nota isto. Estão ali presentes através de vários modos, agressividade, emoções, apatia, etc. Um dia temos que ter uma agenda para abordar esse passivo todo. Muitos partidos políticos, incluindo o partido maioritário da oposição, apanharam um choque traumático a partir dos resultados que surgiram e estão numa apatia neste momento. Mas a sociedade tem que animar as comunidades. As grandes igrejas estão mais ou menos cooptadas ao nível das lideranças. Faço parte da comissão do fecho do COIEPA, é muita pena que digo isso porque o COIEPA que foi criado para poder abordar as questões de paz que não terminam só com o fim da guerra, é o mesmo COIEPA que os líderes mandam fechar. Infelizmente sabemos como é que as coisas lá dentro são, que alguns até apareceram com os nomes como propostas para deputados, outros recebem carros, outros recebem outros benefícios, outros estão à espera – “se o outro recebeu, deixa-me encostar lá também”! Toda essa cultura pervasiva (e quem está no poder gere tudo isso muito bem a seu favor), todo esse clientelismo é pervasivo a tudo, fazendo que a sociedade tende a se inibir. Quando passei pelo Huambo encontrei uma realidade desoladora do ponto de vista de exercício das liberdades fundamentais. Um grande número de académicos estava cooptado nos comités de especialidade, limitando a liberdade que os caracteriza como independentes. Estamos num quadro que realmente, conforme diz o Reginaldo Silva, não anima a participar. Mas agora, se nós líderes das comunidades ficarmos parados, não vamos contribuir para aumentar, maximizar a democracia. E é só assim realmente que vamos ser os cobradores do programa do partido que ganhou e que mereceu a confiança da maioria dos angolanos. Cobrando é pela cidadania, é pela participação e é uma participação a longo prazo.
“Do ponto de vista teórico, não é difícil enquadrar o tema em si, porque a chamada revisão constitucional em situação transicional, aparece como uma adenda ao próprio processo de reconciliação/estabilização de uma sociedade pós conflito. Ou seja, dentro da agenda que um país pós conflito concebe para além do desarmamento dos militares, do enquadramento dos deslocados e refugiados, o processo de reconciliação inclui também a chamada revisão constitucional, cujo fim é o de enquadrar as várias e, às vezes, contendentes visões, numa única carta da nação que vem a ser a constituição. Do ponto de vista teórico não há obstáculos. No entanto, cada contexto é sui generis e então a questão que se coloca é como enquadrar na revisão constitucional as especificidades e visões locais dentro de uma agenda alargada de reconciliação nacional. É muito difícil fazer-se o enquadramento específico e contextual e não há nenhuma sociedade que tenha feito essa transição de uma maneira fácil e simplista. Quanto a Angola, várias perguntas se poderiam colocar, como por exemplo,
n O que pretendemos na pacificação de Angola?
n Que Angola emergiu do conflito? É uma Angola unida ou fragmentada
n Que visão têm as elites ricas da Angola actual e da do futuro?
n Que visão para alguns sectores internacionais?
Podemos inclusive acrescer outras questões subsequentes. Por exemplo, que agenda Angola tem para gerir o passivo do conflito. Os teóricos da área de gestão de sociedades transicionais, quando se referem à pacificação, colocam ênfase na necessidade de um processo de cura, de consertação, de reconstituição participada da pátria, da sociedade, mas de modo renovado. Esta cura, tanto pode ser de feridas decorrentes de uma guerra cruel, quanto de uma política opressiva que cerceou liberdades e diminuiu as pessoas na sua identidade, dignidade e capacidade mostrarem seu ponto de vista, seus desacordos em relação a assuntos de natureza governativa. Ora nós temos mais ou menos os dois ingredientes juntos na nossa história passada. Nós viemos duma guerra e também viemos duma situação em que de forma política e aberta se privavam as liberdades fundamentais em nome de uma ideologia totalitarista e excludente. Tal causou imenso sofrimento cujas feridas levarão tempo e vontade colectiva para sararem. Isto tanto se observou do lado do governo quanto do da rebelião armada. As sequelas desse passado precisam de um tratamento, uma abordagem especial. Agora, que agenda que temos para podermos abordar esse passivo. Para além disso, temos a mesma visão de Angola? Temos de enfrentar o nosso passivo, incluindo preconceitos de pendor colonial, que e manifestam das mais dversas formas.
Que visão de Angola podemos abordar?
Que visão temos de Angola? Que ideia têm de Angola as elites? Os Hanhas? Os habitantes de Lobito? Os sectores internacionais têm também interesses em Angola. Devem ter acabado de ver pela televisão que está-se a criar uma Comissão do Golfo da Guiné porque este tornou-se um eixo estrategicamente importante para o sector de segurança e energias sabendo que o Golfo Pérsico está instável e não pode produzir o petróleo de acordo com a demanda do Ocidente. Nesse sentido, o petróleo do Golfo da Guiné, onde Angola pontifica, começou a ser extremamente importante. Há interesses de grande envergadura a nível internacional que olham para Angola e têm interesses em Angola.
Que Angola temos nós depois do conflito (quer ideológico, quer militar)?
Temos uma Angola unida ou uma Angola fragmentada? Em países pós conflito que vêm de opressão, guerra ou ocupação, etc., existe uma ligação lógica e articulada entre a construção da Nação, o processo de reconciliação e a feitura participada e com a perspectiva de que os que participam nesse processo têm o sentido de pertença da nova Constituição. Qualquer Constituição que saia deste tempo tem que ter um pouco o sentido de construção colectiva para que as pessoas tenham o sentido de pertença. Os cidadãos ao contemplarem a constituição devem exclamar: Tchetu!! Isto é nosso! Isto nos pertence. A feitura duma Constituição é igualmente uma excelente oportunidade de democratização, no sentido de processo participativo, de aprendizado, de caminhada, partilha de visões diferentes e até dissonantes. Para isso, as metas de uma Constituição pós conflito, especialmente designada para gerir o passivo do conflito, da sociedade fragmentada, tem de entusiasmar as pessoas e mobilizá-las. Se não houver o ingrediente de participação, a constituição pode tornar-se em subproduto dos beligerantes e/ou das elites interessadas no poder. A feitura da Constituição é uma oportunidade de galvanizar as vontades das pessoas para criarem uma nova visão de uma nova e renovada sociedade. Inclusive, os cidadãos ajudarm, com sua participação, a redefinir os princípios fundamentais sobre os quais o país se vai reorganizar e funcionar. O princípio fundamentalíssimo que deve reger uma sociedade pós conflito é o primado da lei. Ninguém deve estar acima da lei. Todos são iguais perante a lei. A redistribuição do poder político é outro é um outro princípio pragmático que uma sociedade que elabora uma nova Constituição deve perseguir e prosseguir. Que Angola é que nós temos depois do conflito? Que Angola emergiu depois do conflito? Onde é que nós estamos neste momento? Temos o chamado ciclo do conflito violento. Temos uma fase de pré conflito onde se tem tensões, estruturas de opressão, mecanismos de coarctar as liberdades, etc., etc., exclusão social... O ciclo seguinte está ligado ao conflito violento onde se tem guerra, morte, destruição, ditadura, e depois o pós conflito, onde tens o cessar-fogo, a negociação, o desarmar, a pacificação, a estabilização social, etc., etc. Se não se criam espaços onde se discutam duma forma mais participada, aturada, partilhada, a questão do enquadramento de cada grupo social, tal pode começar um processo em que se engendram novos conflitos, novas dinâmicas de exclusão. Novas dinâmicas de tensão. Especialmente num país rico como o nosso, as desigualdades estruturais começam a ter maior visibiildade e incidência na vida dos cidadãos. Uma vez mobilizadas as comunidades, é preciso partilhar experiências com organizações de impacto internacional. Por exemplo nós, quando elaborarmos a nossa Constituição, temos também que buscar experiências de outras sociedades que passaram pelo mesmo processo. Há grupos muito bem organizados ao nível de África, como por exemplo o CDD que é um centro de abordagem constitucional com sede na Nigéria e na Inglaterra, e que ajuda a capacitar os actores da sociedade civil no processo de participação da elaboração/revisão constitucional.
Participação cidadã e o desafio das heranças do passado.
Existem vários obstáculos à participação política em África, e que podem manifestar-se no momento da elaboração/revisão da constituição. Nesses momentos, as elites que governam têm a tendência de influenciar os resultados, pois estes irão definir a forma de Governo e de Estado a vigorar num determinado país. Existem heranças do patrimonialismo, o governo pessoal, Tem-se alguns Estados liderados por figuras carismáticas, onde alguns assuntos de Estado são geridos como se fossem privados. O clientelismo, a compra de favores, a compra de interesses,... Existe a cultura da arrogância, do pensar que se está acima da lei. Quando se trata desse grupo de privilegiados nem sempre a lei faz sentir a sua mão pesada para os colocar no lugar onde deveriam ficar.
Mas também é verdade que nas sociedades pós conflito, quando termina a violência militar, a cultura da violência não desaparece do dia para a noite. Dilui-se e transforma-se noutras dinâmicas. Talvez menos visíveis, menos violentas também, mas que podem ser perigosas para a própria estabilização gradual da sociedade. Revelam-se essencialmente ao nível económico, cultural, político, etc. É toda essa herança, que nós já nos referimos, das culturas autocráticas e ditatoriais que podem ser empecilho para o desenvolvimento político de qualquer país. Tal atitude não é somente apanágio dos que lideram, mas é pervasiva a certos sectores não estatais, como por exemplo, nos partidos políticos. São elas sequelas de uma cultura geracional que foi passada para a mentalidade das pessoas e elas geriram as suas vidas com essa cultura. E vai levar muito tempo para poder-se erradicar essa cultura. Está a emergir um grande cantor angolano, de nome Yannik (peço perdão se não escrevi correctamente o nome). Este homem tem uma das canções onde, masi ou menos diz que o país está a mudar mas a mentalidade não. De facto, não basta mudar as formas, o exterior, porque a mentalidade permanece ainda não mudou.
As divisões/fragmentações étnico/identitárias
No período pós-conflito, em geral, existe a cessação da violência militar e. Talvez a política, mas devagarinho, os grupos ao reconstituírem suas identidades, encontram-se, às vezes, a construir igualmente conflitos étnico-identitários. Temos sintomas disso, com exemplos do abafado debate sobre o Cunene do Norte e o do Sul, as reclamações de elites Lunda-Tchokwe sobre os Vakakwiza (adventícios, aqueles que não sendo naturais, estão a aproveitar-se das vantagens que a terra oferece) e a lenta construção de uma memória que luta pela autonomia de um “antigo protectorado. Existem na Huíla elites que levantam a discussão se esta província pertence aos Nhanekas ou a outros grupos étnicos. As tendências independentistas em Cabinda são igualmente o culminar de um antigo e lento processo de reclamação étnico-identitária que não foi abordado a tempo. Benguela deve ter igualmente os seus desafios de concertação identitária entre grupos diferentes. Haverá sectores minimalistas que quererão ignorar o assunto. Mas outros tentarão acompanhá-los no seu desenvolvimento pois estes problemas levantados não são causa em si. A causa é mais profunda e deve ser procurada com outros métodos. Quando se olha para o problema do Ruanda, entre hutus e tutsis, o problema não está no ódio tribal. Os antropólogos, os historiadores que conhecem as línguas africanas ensinam-nos verdades profundas. Elas não têm palavras ou expressões de tribo ou raça. A pergunta é: como surgem e se desenvolvem estes problemas de reclamação étnico-identitária? É que quando às vezes há a percepção de que um grupo é privilegiado a despeito doutro, isto pode criar preconceitos que se sedimentam e se vão generalizando. Mas a causa não é só esta. Há várias causas sociais, económicas sobretudo, culturais, de acesso às oportunidades, de tratamento igual ou desigual, que vão agravando as coisas. O debate constitucional não deve ignorar estas realidades. A Constituição tem que estar a reflectir tudo isto! Tem que reflectir a história do povo, os seus medos, os seus receios, as suas aspirações, a visão e a alma da Nação que se quer construir. Uma Constituição tem que ser reintegradora do conjunto e da vontade da maioria mas incluindo a visão das minorias. Podem ser étnicas, rácicas, de grupo, de interesse, etc., etc. Por exemplo, na África do Sul, os homossexuais foram incluídos na abordagem da feitura da nova Constituição. A Constituição deve ser a forma que inclui as visões diversas, as visões diferenciadas e até contraditórias, os credos, as culturas e as interacções que se confrontam positivamente na dinâmica de uma sociedade. Um exemplo disso é o preâmbulo para a nova Constituição iraquiana aprovada em 2005. Como vós sabeis, o Iraque é a antiga Mesopotâmia. Ele começa assim: “Nós, o povo da Mesopotâmia, o berço dos apóstolos e dos profetas, o lugar do repouso dos Imãs (sacerdotes muçulmanos), o berço da civilização, os pioneiros da escrita e a escola da numeração (são eles que inventaram os números). Sobre o nosso solo foi elaborada a primeira lei feita pela mão humana e o pacto mais antigo de justa governação foi celebrado. E sobre o nosso chão, os santos e as fileiras dos profetas rezaram, os filósofos e cientistas elaboraram teorias e os escritores e poetas se elevaram.” Vede, o iraquiano quando lê isto, se revê nisto. Como é que chegaram a esse desenvolvimento? Porque na elaboração da Constituição, apesar de ser um governo contestado (o governo imposto pela coligação liderado pela América é um governo contestado), houve ainda o cuidado de, o terceiro sector (o sector das ONG e das associações), mobilizarem o povo ( o Iraque tem uma das elites mais intelectuais do golfo pérsico), mobilizarem as universidades, os centros do saber, e todo o mundo participou, deu a sua opinião para dar lugar a um texto onde as pessoas se revêm..
O que é preciso para nós angolanos, participarmos da Constituição?
Informação ao povo. Qual é o estado da nossa comunicação social?? Será que o mundombe que está lá no Dombe Grande, a cuidar do seu gado, sabe que foram eleitos os deputados que compõem a comissão constitucional?
O segundo passo é a educação do povo sobre o processo. Para que ele aprenda o significado da Constituição como carta que vai reflectir as vontades, bem como sobre as modalidades de participação
Depois começa o processo de consulta abrangente inclusiva. Deve ser envolvente e não contemplar só as elites do poder político. Todos os grupos socialmente visíveis devem ser envolvidos (as maiorias e as minorias). Para isso, os grupos devem empoderados, capacitados a fim de tomarem parte do processo. Devem ser tidos em conta muito particularmente aqueles que se sentem marginalizados, os excluídos, estigmatizados, todos esses devem ser envolvidos. A sociedade civil tem que se preparar para o efeito. Em relação a Angola, exisem vozes pessimistas de que não adianta participarmos do processo da revisão constitucional, porque o actual parlamento está totalmente dominado pelo partido no poder, e qualquer visão fora deste, não vai passar pela aprovação deste. No entanto, mais do que procurarmjos por êxitos imediatos, deveríamos nos envolver nessa abordagem tendo em vista objectivos a longo prazo.
Nessa senda, vou partilhar convosco a iniciativa que nós tivemos entre 1999 e 2000 até celebrarmos a primeira Jornada Constitucional que foi realizada em Novembro de 2000. Nós ouvimos falar, à luz do protocolo de Bissesse, se tinha formado uma comissão constitucional em 1997 e que estava a preparar as ferramentas da futura constituição, com aprovação dos 27 princípios. Nós que vivíamos na altura o problema da terra nos Gambos, pensámos assim. Que a terra, antes de ser um factor de desenvolvimento, deveria antes ser gerida por uma política. E essa política tem que ser plasmada na Constituição. Temos que contribuir igualmente para que a visão dos Mungambues, (a visão das pessoas que vivem nos Gambos), Mundimbas, os pequenos comerciantes, os Khoi-San, as mulheres, os homens, os pastores, etc., etc. se reflicta nessa Constituição. Por isso mesmo vamos tentar colocar o nosso pé por dentro, antes que os políticos agarrem o espaço público e se assenhorem dele. Começámos a abordar com os mais velhos: “Vai-se fazer uma carta e essa carta vai conter o que é que o Tchokwe pensa, o que é que o Kwanhama pensa, o que é que o Muakavona pensa, o que é que o Mundima pensa, o que é que um comerciante que está na povoação pensa, o que é que um pastor que cuida do seu gado pensa. Então essa carta tem que ter a visão desses todos”. Os velhos disseram: “Vai haver essa carta? Por favor, nós estamos dispostos para sermos escutados porque desde o tempo colonial que nós não somos escutados, aliás quando querem nos escutar é só para criarem-nos problemas. Quando andaram cá a escutar-nos foi quando começou a guerra de 40-42 contra os Mucubais. Vieram para cá fazer inquérito de saber como é que é a nossa relação com o colono e logo a seguir guerra. Depois veio 75 e houve confusão. Depois vieram sul-africanos. Nós nunca fomos escutados sobre a nossa vida, sobre a nossa cultura. Nós estamos disponíveis.” Fizemos uma grande mobilização e para não ficar só com os Gambos, auscultámos comunidades também dentro da cidade, comunidades do Kipungo, da Matala, do Namibe e fomos até ao Cunene recolher também algumas amostras. Fizemos uma pesquisa, para que as pessoas colocassem no papel a sua visão sobre o país, as suas inquietações, os seus receios. Isto tudo colocaram no papel. E para apresentar o resultado dessa contribuição, nós preparámos então a Jornada Constitucional. Começámos a mobilizar sectores dentro do parlamento. Fomos ter com o Sr. Dino Matrosse, conversámos com o Sr. Bornito de Sousa, como o partido no poder, deveria ser mobilizado em primeiro lugar para acompanhar o processo. O Sr. Dino Matrosse prometeu que iria enviar 5 parlamentares do MPLA para irem para lá, para abordarem na Jornada Constitucional. Mas, politicamente estávamos adiantados demais. Houve um sector do MPLA que teve medo. Os cinco deputados do MPLA nunca foram ao Lubango e na véspera da realização da Jornada Constitucional o Ernesto Bartolomeu sai com um comunicado onde mais ou menos dizia que o governo não se revia na Jornada Constitucional do Lubango, porque a recolha de opiniões somente aconteceria depois do rascunho da Constituição estar pronto. Eu estava à frente do écran e comecei a tremer. Os convidados tinham sido todos mobilizados, de todos os partidos políticos. As comunidades mobilizadas. Os autocarros alugados. Os mais velhos, todos, do Cunene, Namibe, Gambos, Kipungo, Matala, da cidade, estavam todos mobilizados. Reunimos de emergência e reflectimos: “O governo não se revê nisso mas não disseram que não iriam apoiar”. Os nossos amigos parlamentares da oposição moveram-se, mobilizaram os seus apoios em Luanda, avisaram o governo provincial da Huila que iam à Jornada Constitucional e este tinha que mobilizar a sua estrutura protocolar para os apoiar. Foi a nossa salvação. Os parlamentares do MPLA não chegaram, mas esteve lá o pessoal do Fpd, PAJOCA, PDP-ANA, FNLA. Quase todos os partidos estiveram lá. O curioso é que a UNITA também não foi. A UNITA quando soube que o partidomaioritário não ia, e sabendo-se que se estava em plena guerra, também não foi. Não imaginam a alegria e o sentimento de alívio que nós tivemos quando se via uma mamã dos Gambos, ou da Huila com os seus atavios sentada lado a lado com a mamã Anália de Vitória Pereira. Não imaginem a alegria que isso nos trouxe. O Dr. Alexandre Sebastião dum lado, o soba dos Gambos do outro. Alguns representantes de algumas ONG mediram a situação e acharam que o ambiente estava. Mas quando viram a delegação que veio de Luanda decidiram também ir. Foi uma experiência interessante, de aventura, mas que nos fez pensar que poderiamos fazer coisas maiores.
Nós vivemos num momento em que estão em curso várias dinâmicas do ponto de vista social e político. As pessoas tinham muitas expectativas antes das eleições legislativas de 2008, e conversando com algumas, dá a entender que a auto estima, a aura e o entusiasmo que tinham pelas eleições está a decrescer. Isto pode ser não muito bom para motivar as comunidades a participar.. Acompanhei há dias um interessante e acalorado debate na Rádio Ecclesia que foi animado pelo Reginaldo Silva, os Drs.Marcolino Moco Fernando Macedo. O Reginaldo Silva dizia claramente que não estava optimista, porque à partida qualquer iniciativa da sociedade civil de fazer parte de um processo de elaboração da Constituição, como acontece em África, o grupo que manda vai dominar o processo constituinte para salvaguardar os seus interesses. Eu concordo com essa perspectiva mas eu que estou ligado com comunidades a quem é preciso transmitir a esperança, devo pensar e agir doutro modo, contribuindo para o exercicio da cidadania que contribua para a mudança a longo prazo. O problema nosso (e ligado um pouco aos partidos políticos), dizia muito bem o Marcolino Moço, é querer investir no poder. Deve-se é investir na abordagem da política a longo prazo. Mesmo que as nossas visões não estiverem reflectidas neste processo constituinte, se nós continuarmos a mobilizar o povo, construímos devagarinho a pedra da participação política. Não vamos ganhar desta vez. Muita coisa que gostaríamos que estivesse contemplada no projecto constituinte não vai estar. Vai acontecer o mesmo que aconteceu com a lei das terras. A centelha que incendiou o processo de abordagem da lei da terra veio dos Gambos. Nós nem tínhamos consciência, nem ideia de que o que estávamos a começar com algum entusiasmo juvenil ia desencadear a reflexão sobre as terras. Mas ainda assim a questão das terras é muito grave em Angola. Aquelas comunidades que não tomaram medidas preventivas naquela altura, hoje têm problemas muito graves de ocupação de suas terras. Também, para o processo constitucional precisamos de rever como é que nós elaboramos os nossos programas de educação cívica para as comunidades. Deveríamos abordar a questão da recuperação da auto estima das comunidades. Deveríamos conceber programas de desenvolvimento educacional informal mas na perspectiva da libertação. Para quê? Para que nós consigamos devagarinho abordar os traumas coloniais e os preconceitos anichados no recesso do nosso subconsciente colectivo.
Por tudo isso temos que começar primeiro a enfrentar o fantasma colonial e pós-colonial que está nas nossas cabeças e que se foi sedimentando. Temos que começar a abordar a cultura do medo que se instalou e que inibe iniciativas e alguns interpretam a necessidade de votar para quem está no poder como salvaguarda de suas vidas e das das suas famílias, mas que não passa da manifestação colectiva da cultura do medo: “é melhor votar no que você conhece. Se você não vota naquele que conhece, você não sabe o que vai acontecer!” Na Huila circularam panfletos a dizer – “cuidado, se você votar no desconhecido, você vota na falta do sal”. Ora a falta de sal se via nos tempos em que havia guerra, em que as populações estavam sitiadas. Essa cultura do medo está connosco. Temos que começar a pensar numa educação libertadora. A sociedade tem que começar a pensar a sério num programa de abordagem dos efeitos pós traumáticos que o conflito deixou. Quem vai ao Kuito nota isto. Estão ali presentes através de vários modos, agressividade, emoções, apatia, etc. Um dia temos que ter uma agenda para abordar esse passivo todo. Muitos partidos políticos, incluindo o partido maioritário da oposição, apanharam um choque traumático a partir dos resultados que surgiram e estão numa apatia neste momento. Mas a sociedade tem que animar as comunidades. As grandes igrejas estão mais ou menos cooptadas ao nível das lideranças. Faço parte da comissão do fecho do COIEPA, é muita pena que digo isso porque o COIEPA que foi criado para poder abordar as questões de paz que não terminam só com o fim da guerra, é o mesmo COIEPA que os líderes mandam fechar. Infelizmente sabemos como é que as coisas lá dentro são, que alguns até apareceram com os nomes como propostas para deputados, outros recebem carros, outros recebem outros benefícios, outros estão à espera – “se o outro recebeu, deixa-me encostar lá também”! Toda essa cultura pervasiva (e quem está no poder gere tudo isso muito bem a seu favor), todo esse clientelismo é pervasivo a tudo, fazendo que a sociedade tende a se inibir. Quando passei pelo Huambo encontrei uma realidade desoladora do ponto de vista de exercício das liberdades fundamentais. Um grande número de académicos estava cooptado nos comités de especialidade, limitando a liberdade que os caracteriza como independentes. Estamos num quadro que realmente, conforme diz o Reginaldo Silva, não anima a participar. Mas agora, se nós líderes das comunidades ficarmos parados, não vamos contribuir para aumentar, maximizar a democracia. E é só assim realmente que vamos ser os cobradores do programa do partido que ganhou e que mereceu a confiança da maioria dos angolanos. Cobrando é pela cidadania, é pela participação e é uma participação a longo prazo.
É aqui que eu queria parar para que nós revíssemos as nossas atitudes individuais, revíssemos as nossas posições, combatêssemos a cultura da acomodação, a cultura do medo, da resignação, levantássemos mais uma vez a nossa auto estima para podermos participar no processo constituinte e contássemos com instituições que têm essa abordagem constitucional. Quem sabe o OMUNGA, o ACC, a AJPD, as Mãos Livres e outras associações que tiveram agora o estatuto de observador junto da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, possam fazer uma grande articulação quer com a África em geral, com a União Africana, com as instituições que têm experiência em ajudarem o povo e a partir de lá, temos também experiência de intercâmbio, como é que sociedades como a nigeriana que durante muito tempo foi caracterizada como sendo da confusão, corrupção, crime, clientelismo, etc., etc., está gradualmente a reabilitar-se e a sair do ciclo vicioso em que estava e está a alcandorar-se a uma posição de uma colectividade de cidadãos com auto estima e dignidade.
1 comentário:
quem foi o prelocutor da palestra?
mande-me por email, por favor
carolsalvador2012@gmail.com
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