Para iniciar este Debate, precisamos antes de mais de nos situarmos no que se refere aos conceitos incluídos no tema proposto para o Debate, nomeadamente: Democracia, Cidadania, Eleições e Sociedade Civil.
Antes de apresentarmos a nossa contribuição para esta discussão, vamos passar em revista a essência dos conceitos mobilizados, começando exactamente por democracia.
Democracia refere-se à forma como o Estado exerce o seu poder soberano. Mais especificamente, refere-se a quem exercerá o poder de Estado, já que o Estado propriamente dito é uma ficção jurídica, isto é, não possui vontade própria e depende de pessoas para funcionar. Na sua origem do grego, "democracia" quer dizer "governo do povo". Nas sociedades modernas, contudo, não é possível o povo governar propriamente, exercer a democracia directa; por isso, os actos do governo são exercidos por membros desse povo "politicamente constituídos", os escolhidos para cargos públicos através de eleições. No Estado democrático, as funções típicas e indelegáveis do Estado são exercidas por indivíduos eleitos pelo povo de acordo com as regras pré-estabelecidas que regem o pleito eleitoral.
Um processo que viabiliza a governação da sociedade de forma democrática é a descentralização, que consiste na transferência de autoridade e responsabilidade do governo central para outros níveis de governação, provincial, municipal e comunal. E ele é fundamental porque permite concretizar um dos princípios básicos da boa governação e da democracia: a inclusão progressiva de todos os grupos sociais, temas e realidades regionais na agenda política nacional viabilizando a participação. Quando se verifica uma real transferência legal de poderes e responsabilidades do Estado central para os governos locais ou sub-nacionais eleitos, estes passam a exercer poderes que integram a sua competência própria, apesar de sujeitos à tutela administrativa mais ou menos acentuada do poder central.
2.
Cidadania é a condição da pessoa que, como membro de um Estado, se acha no gozo dos direitos que lhe permitem participar da vida política. A cidadania é, portanto, o conjunto dos direitos e dos deveres de que goza um indivíduo que lhe permitem intervir na direcção dos assuntos públicos do Estado, participando de modo directo ou indirecto na formação do governo e na sua administração: ao votar (directo) ou ao concorrer a um cargo público (indirecto).
Ao longo do tempo, diversas gerações de direitos foram incorporados à noção de cidadania:
- Século XVIII: os direitos civis correspondem aos direitos individuais à vida, segurança, liberdade, igualdade, propriedade, ir e vir, etc.. Estão na base da concepção liberal clássica;
- Século XIX: os direitos políticos dizem respeito à liberdade de associação, reunião e organização política e sindical, à participação política e eleitoral, ao sufrágio universal, etc. São os chamados direitos individuais exercidos coletivamente, e acabaram por se incorporar na tradição liberal.
Século XX: a partir das lutas dos movimentos operário e sindical, os direitos sociais tornam reais os direitos formais, representam a garantia de acesso aos meios de vida e bem-estar social, correspondendo aos direitos ao trabalho, saúde, educação, reforma, etc.
A relação entre direitos de cidadania e o Estado é recorrente na literatura devido à tensão interna entre os diversos direitos que compõem o conceito de cidadania, designadamente entre os relacionados com “liberdade” e os relacionados com “igualdade”. Enquanto a plena realização dos direitos de primeira geração - civis e políticos – sugerem como desejável um Estado mínimo, a concretização dos direitos de segunda geração - direitos sociais - demanda uma presença mais forte do Estado. É por isso importante notar que a tese neoliberal do Estado mínimo prevalecente na social-democracia dos anos 90, corresponde a estratégias diferenciadas dos diversos direitos da cidadania e respectivos atores sociais, e não a meras discussões quantitativas.
- Segunda metade do século XX: referem-se aos direitos que têm como titular não o indivíduo mas grupos de indivíduos constituídos em “povo”, “nação”, “coletividades étnicas” ou a própria humanidade, como o direito à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, à paz, a um meio ambiente saudável, etc.
Ø de uma democracia frágil e limitada por uma visão formalista e redutora, que não garante igualdade de condições e de oportunidades para o exercício da cidadania;
Ø da ausência de uma cultura política por parte dos actores sociais, capaz de interpelar o Estado e romper com relações clientelistas e corporativas, e o autoritarismo patrimonialista, que limitam a expansão do processo democrático;
Ø do acesso desigual aos serviços públicos, como educação, saúde, saneamento, justiça, entre outros, discriminando largas porções da sociedade;
Ø de um distanciamento das instituições do Estado em relação aos cidadãos, ignorando a existência de amplos segmentos sem voz nem visibilidade, agravada pela incapacidade crónica de garantir os direitos básicos;
Ø da presença de sentimentos de impotência política, desamparo social, resignação e/ou conformismo, reduzindo ainda mais as probabilidades de diálogo social.
Estes factores influenciam o fraco empenho, por parte da sociedade, em aumentar os níveis de participação no processo de tomada de decisão e de gestão pública. Para além do receio de retaliações por expressar opiniões sobre questões políticas devido à prevalência da ideia de que a política é assunto reservado ao sistema político, alimentada pela pouca abertura do espaço público que inibe o desenvolvimento de uma cultura de debate e a valorização da própria opinião e da dos outros, os custos da acção colectiva parecem pesar na opção pela não participação. Numa sociedade que vive no curto prazo, no imediatismo, na busca de soluções para os problemas de sobrevivência no dia-a-dia, a disponibilidade de tempo para participar é um luxo de que a maioria não dispõe. Por outro lado, sentimentos de inevitabilidade, de resignação, de não valer a pena, também estão na origem desta escolha, entendida como a mais segura.
3.
Eleição é o processo pelo qual um grupo designa um de seus integrantes para ocupar um cargo por meio de votação. Na Democracia representativa, é o processo que consiste na escolha de determinados indivíduos para exercerem o poder soberano, concedido pelo povo através do voto, devendo estes, assim, exercerem o papel de representantes da nação. A eleição pode processar-se com o voto de toda a comunidade ou de apenas uma parcela dessa comunidade, os chamados eleitores.
4.
O termo civilidade traduz uma tentativa de explicar o paradoxo da construção da cidadania numa sociedade dominada por valores individuais. Como ponte entre sociedade civil e Estado, foi empregado por Shills num sentido ao mesmo tempo individualista, paroquial e holista para representar a atitude individual de preocupação com o bem público, transmitindo a ideia de espírito público que se perdeu na sociedade de mercado. Traduz a conduta de uma pessoa cuja auto-consciência individual é, ainda que parcialmente, dominada por sua auto-consciência colectiva, cujas referências são a sociedade como um todo e as instituições da sociedade civil.
5.
Num sentido amplo do entendimento do conceito, a sociedade civil corresponde à auto-organização da sociedade fora dos campos estritos do poder do Estado e dos interesses do mercado. É o conjunto de organizações e redes institucionais independentes do aparelho de Estado: interagem com o poder público, mas são autónomas. Para além das redes de organizações formais, a sociedade civil também inclui grupos informais de cidadãos empenhados em actividades de alcance público.
Ø fortalecimento de uma cultura de debate e de crítica;
Ø construção de um ambiente de liberdade de expressão, reunião e associação;
Ø criação e promoção de espaços de participação;
Ø agregação do componente de investimento humano e social às intervenções do Estado e do mercado;
Ø implementação de estratégias de influência no processo de decisão de políticas públicas;
Ø intervenção em processos de arbitragem e mediação social;
Ø identificação e exploração de oportunidades de participação criadas pelos processos de reforma institucional em curso no país (revisão constitucional, descentralização, educação, justiça, entre outras).
II – O Enquadramento legal da acção da sociedade civil
A Lei Constitucional consagra a instituição e operacionalização do acesso e uso efectivo e universal dos direitos, principal foco da acção da sociedade civil:
# os relativos à reprodução cultural (liberdade de pensamento e de expressão, de imprensa e de comunicação),
# os relacionados com a integração social (liberdade de associação e de reunião)
# e os que asseguram a socialização (protecção da intimidade e da privacidade, e da integridade pessoal),
1. Princípios e premissas para a acção da sociedade civil
# Integração: aberto à participação de cidadãos e de OSC’s sem discriminações
# Não institucionalizado: o motor consiste na capitalização das experiências e os protagonistas são os cidadãos, as instituições e os processos
# Unidade: manifestação da vontade colectiva através de tomadas de posição
# Compromisso/sentimento de pertença: apropriação e consolidação da agenda pública
# Coerência e consequência: debate contínuo e dinâmica de análise-acção
# Abrangência e conhecimento: maior representatividade e capacidade das OSC’s
# Rapidez e flexibilidade na programação e na implementação: mecanismos não burocráticos e lineares
# Intervenção na perspectiva da procura, em particular dos excluídos: alargar as oportunidades de acesso e uso dos direitos, de inclusão na vida pública, e de transformar crescimento económico em desenvolvimento para todos
# Horizontalidade: não existe hierarquia.
Reside na sociedade civil um enorme potencial de geração de mudanças sociais, esgotados que parecem estar os recursos dos sistemas político e económico para, de per si, provocarem ou conduzirem tal transformação. É na criatividade imanente da intersubjectividade colectiva, que reside a possibilidade de mudança social, independentemente do contexto em que tal transformação precise acontecer: quer se trate de sociedades avançadas ou atrasadas, de desenvolvimento acelerado ou tardio, a utopia de uma cidadania activa e inovadora, comprometida com sua memória social e procurando articular soluções modernas no quadro referencial das formas tradicionais de ser e de pensar, encontra-se na sociedade civil. Isto não significa descartar a participação, neste processo, de atores dos sistemas económico e político, bem como das organizações religiosas, lado a lado com a sociedade civil. Pelo contrário, não só é possível como necessária, tanto quanto desejada, mas não reconhecemos, em qualquer deles, a capacidade de liderança de um tal processo emancipatório, devido às suas próprias características distintivas.
III – Papéis específicos da sociedade civil nos processos eleitorais
# à democratização da sociedade, das relações sociais e de poder, que passa pela inclusão social e a promoção da cidadania universal a todos os angolanos – criação de oportunidades de acesso a bens colectivos e serviços públicos numa base universal -,
# à criação da instâncias de participação, aos diversos níveis da sociedade e sobre os mais diversos temas de interesse público - que exercita a democracia entre os que nelas participam, estimula o desafio à lógica dominante, amplia os espaços públicos através da diversificação dos actores e dos discursos, e produz oportunidades de troca de informações e troca de experiências, permitindo um conhecimento mais amplo dos problemas e das possíveis soluções para os mesmos -,
# à concepção e implementação de estratégias de influência com vista a vencer as resistências à participação que ainda prevalecem, não só por parte do Estado mas também por parte dos próprios cidadãos
# intervenções visando dar voz e visibilidade aos “invisíveis” e aos “sem voz”
# desenho de estratégias emancipatórias visando o acesso e uso efectivo dos direitos de associação, de reunião e de expressão a todos os cidadãos
# à interpelação do Estado e as suas instituições, visando a criação de condições de mudança do ambiente institucional, pouco permeável ao diálogo e ao estabelecimento de parcerias
# ao esforço colectivo - alimentado pela realocação dos recursos outrora destinados ao esforço de guerra -, com vista a transmitir confiança, compromisso e credibilidade, visando a melhoria dos padrões de vida, quantitativos e qualitativos, sustentados no desenvolvimento do capital humano e social de Angola
# identificar e implementar estratégias de pressão no sentido da melhoria das práticas de governação, nomeadamente a gestão transparente dos recursos públicos e a políticas distributivas dos rendimentos dos recursos naturais de todos, com incidência em investimentos públicos e combate à pobreza através dos processos de democratização e modernização da sociedade e de construção de cidadania ,
# à educação cívica dos angolanos - começando pela melhoria das práticas internas, exercitando os princípios democráticos que se defendem -, como forma de promover a auto-estima e desenvolver as capacidades de comunicação e de intervenção social dos cidadãos
A sociedade civil deve preparar-se organizacional e tecnicamente para os processos eleitorais em todo o País, com vista a:
- Acompanhamento dos procedimentos legais de preparação das eleições, como criação da CNE, lei eleitoral, registo eleitoral, organização territorial e logística, bem como opções técnicas sobre as formas (manual, urna electrónica, contagem, recolha de urnas, etc.)
- monitorização da implementação dos procedimentos e decisões de preparação das eleições
interpelação aos partidos políticos acerca dos respectivos programas, candidatos e eventuais coligações - organização de debates públicos sobre os programas dos partidos e sugestão de alternativas às propostas apresentadas
- denúncia de actos contrários ao espírito e ao disposto no quadro legal criado para as eleições e princípios democráticos universais (nomeadamente os direitos fundamentais)
acompanhamento do acto eleitoral, funcionamento das assembleias eleitorais, mesas de voto, contagem de votos, anúncio dos resultados parciais e finais, e outras, através da sua participação sob o estatuto de “observador”.
Acima de tudo, a sociedade civil deve manter uma luta permanente e generalizada, com recurso aos mais diversos meios de influência da opinião pública, com vista à criação de condições para garantir a essência de eleições livres, nomeadamente:
- A manifestação da plena expressão da vontade política do povo angolano
- A realização regular de eleições, ou seja, a existência de um calendário eleitoral plurianual, que seja tornado público e devidamente divulgado pelos mais diversos meios de comunicação social
- A garantia de sufrágio universal, igual e não discriminatório (em discussão as questões de idade, nacionalidade, residência – diásporas – e capacidade mental, editado em lista eleitoral única
- Garantia da liberdade de participação em actividades, ou expressão de opiniões sobre campanha política, programas partidários, etc.
- A criação de um quadro jurídico-legal adequado às condições socioculturais e económicas dos eleitores, não inibidor ao exercício do direito de voto ou do direito de exercer um cargo electivo, prazos razoáveis para a realização das diversas etapas do processo eleitoral, e acesso equitativo aos meios de comunicação social, regras de financiamento das campanhas partidárias, proibir e punir práticas de intimidação e de corrupção
- A criação de um ambiente que paulatinamente promova a confiança no processo eleitoral.
Benguela, 28 de Maio de 2009.