12/01/2011

Um sistema presidencial sem responsabilidade do Presidente da República - Mihaela Neto Webba

Um sistema presidencial sem responsabilidade do Presidente da República I*

Com a aprovação da nova Constituição da República de Angola (CRA) – a terceira da nossa história, ao contrário do que muitos experts afirmaram na altura que a CRA era a primeira constituição angolana, esquecendo-se claramente das duas anteriores (a Lei Constitucional da República Popular de Angola - LCRPA e a Lei Constitucional Angolana - LCA), que apesar de ambas denominarem-se "lei constitucional", eram formal e materialmente verdadeiras constituições – o nosso sistema de governo metamorfoseou-se de sistema semi-presidencial para sistema misto parlamentar atípico (falarei desta denominação em momento oportuno), a que alguns constitucionalistas angolanos apelidaram de sistema presidencialista parlamentar.

O sistema mudou, mas as responsabilidades do Presidente da República (PR) nem por isso; na anterior constituição de 1991, com as alterações de 1992, havia irresponsabilidade do PR com excepção dos crimes de alta traição à pátria e suborno.


Nesta nova constituição o figurino parece que alterou-se ligeiramente, porém na prática ficou tudo exactamente na mesma, pois apesar de o legislador constituinte estabelecer a possibilidade de o PR ser destituído do cargo nas situações de crime de traição à Pátria e espionagem, de suborno, peculato e corrupção, por incapacidade física e mental definitiva para continuar a exercer o cargo, por ser titular de alguma nacionalidade adquirida e por crimes hediondos e violentos tal como definidos na presente Constituição, a regra é a da irresponsabilidade do PR pelos actos cometidos no exercício das suas funções.


De acordo com a CRA, o seu artigo 127º estabelece a irresponsabilidade impondo o facto de ele não ser responsável pelos actos praticados no exercício das suas funções, salvo em caso de suborno, traição à Pátria e prática de crimes definidos pela Constituição como imprescritíveis e insusceptíveis de amnistia, que são os crimes de genocídio e contra a humanidade (artigo 61º da CRA), todavia, o nosso legislador deixou de fora os crimes de guerra neste leque de crimes imprescritíveis, o que não deixa de ser curioso e interessante para quem a todo custo quis parecer querer responsabilizar o PR apenas por crimes hediondos.


Em 2009 quando escrevi sobre a responsabilidade penal do PR o que de facto defendia era a total responsabilidade de um PR num sistema presidencial, pois entendia que quem governa deve ser responsável pelos actos da sua gestão governativa.


Seria impensável em países como os Estados Unidos, Argentina, Brasil, Chile, até mesmo a Venezuela, o PR não ser responsável pelos seus actos de governação.


Em Angola, não havendo uma separação rígida de poderes entre os três órgãos de soberania – PR, Assembleia Nacional e Tribunais – o legislador deveria estabelecer uma responsabilidade constitucional do PR de forma mais alargada.

Responsabilidade Constitucional
Abordando a questão da responsabilidade constitucional GOMES CANOTILHO entende que devemos ter em conta três dimensões da responsabilidade constitucional: “(i) a responsabilidade pressupõe o reconhecimento ao sujeito dessa responsabilidade («responsável» na linguagem comum) de uma certa margem de «discricionariedade de actuação» ou de «liberdade de decisão»; (ii) a responsabilidade implica, como correlato da liberdade de actuação, uma vinculação funcional traduzida na obrigatoriedade da observância de certos deveres jurídico-constitucionais e da prossecução de certas tarefas; (iii) a responsabilidade articula-se com a existência de sanções jurídicas (penais, disciplinares, civis) ou político-jurídicas (censura, destituição, exoneração) no caso de não cumprimento ou de cumprimento julgado defeituoso dos deveres ou das tarefas de que são incumbidos os órgãos ou agentes constitucionais ”[1]


Responsabilidade Política


De acordo com JORGE MIRANDA “a representação política implica a responsabilidade política ou seja, o dever de prestar contas por parte dos governantes, a sujeição a um juízo de mérito sobre os seus actos e actividades por parte dos governados e a possibilidade da sua substituição por acto destes”[2]. Adianta ainda este autor que “a responsabilidade política abrange, simultaneamente, nas expressões inglesas, a responsiveness (sentido de responsabilidade) e a accountability (prestação de contas)”[3].


A responsabilidade política surgiu primeiramente como uma responsabilidade individual dos ministros em Inglaterra e ao longo dos tempos foi evoluindo para uma responsabilidade colectiva do Governo[4]. De conformidade com M. BENEDITA URBANO o surgimento da responsabilidade política está associado ao fenómeno de deslocação do poder político do monarca para o parlamento, ou seja, está associado ao nascimento do parlamentarismo[5].


De acordo com a definição de responsabilidade política dada por DENIS BARANGER, esta “ é entendida como o movimento através do qual todo o poder do Estado, e especialmente o poder executivo, se submetem a um teste permanente de legitimidade”[6]. Ora essa noção não se pode aplicar em situações em que o Presidente da República, num sistema de governo presidencial, não é regularmente nem directamente sufragado pelo povo.


Normalmente tem se entendido que o titular de um determinado órgão político é responsável pelo órgão que representa. Porém esse entendimento é redutor, pois centra a noção de responsabilidade política “na titularidade de um poder político”[7].


PEDRO LOMBA entende que “o poder político é uma condição necessária da responsabilidade política ou, antes, da feição política dessa responsabilidade. A função da responsabilidade política não é precisamente eliminar o poder político mas conduzir à sua utilização controlada”[8].


Este autor não aceita a identificação entre responsabilidade e poder político, defendendo inclusivamente que, se assim for, esta percepção leva à consequências que ele considera inaceitáveis, mas que no contexto angolano não serão assim tão inaceitáveis, pois “admitir que titulares de órgãos políticos sem legitimidade democrática sejam também politicamente responsáveis”[9].


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*Texto elaborado e adoptado com base no capítulo II (O Presidente da República em Angola) da minha dissertação de mestrado Os Poderes do Presidente da República no Sistema Jurídico-Constitucional e Político Angolano, Dissertação de Mestrado, FDUC, Coimbra, 2009.


[1] GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Almedina, 2003, p. 544.
([2]) JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo VII, Coimbra Editora, 2007, p. 78.
([3]) Idem.
([4]) M. BENEDITA URBANO, «Responsabilidade Política e Responsabilidade Jurídica: baralhar para governar» in Boletim da Ordem dos Advogados, N. 27 (2003) Lisboa, p. 38.
([5]) Idem.
([6]) DENIS BARANGER, Les parlementarisme des origines, Essai sur les conditions de formation d’un exécutif responsable en Angleterre, PUF, Paris, 1999, p. 24.
([7]) PEDRO LOMBA, Teoria da Responsabilidade Política, Coimbra Editora, 2008, p. 70.
([8]) Ibidem.
([9]) Idem.

Continuação do artigo no blog mihaelanetowebba.blogspot.com

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Publicada por Mihaela Neto Webba em Mihaela Neto Webba a 1/11/2011 02:29:00 PM