É para mim uma honra enorme estar aqui nas terras maravilhosas das Acácias Rubras, a convite dos amigos da OMUNGA, para abordar um tema ao qual estou intrinsecamente ligado, na qualidade de um dos vossos representantes:
A Interacção entre o Deputado e o Cidadão em Angola.
Trata-se de um tema que, muito certamente, não se esgotará numa simples abordagem. Mesmo assim, desenvolveremos um esforço no sentido de, sem cansarmos em demasia este augusto auditório, escorrermos nos meandros daquilo que, por um lado, julgamos ser, e, por outro tem sido, o Relacionamento entre os Deputados e os Cidadãos que elegeram aqueles.
Qual deve ser o relacionamento entre o Deputado e o Cidadãos que o elegeu?
Antes dessa abordagem, importará recordar quem é “o Deputado” e quem é “o Cidadão” que elege esse Deputado.
Quem é “o Cidadão”?
Para Aristóteles, o homem realiza sua essência participando da comunidade política. O Estado, que é a palavra moderna com a qual designamos a comunidade política, existe para possibilitar a vida plena, a melhor das vidas possíveis aos homens. A questão é: quando pertenço ou faço parte do Estado? Será que basta morar num território para pertencer automaticamente ao Estado? Para responder a estas questões, é preciso saber o que é ser “Cidadão”.
Aristóteles oferece uma definição curta e precisa: “cidadão é aquele que participa dos poderes do Estado”. Quer dizer, para ser membro da comunidade política não basta morar num país. É imprescindível possuir um poder efectivo de intervenção no Estado. Quais poderes? O povo governa, legisla e julga directamente. Quem só obedece não é cidadão. Ser cidadão é obedecer e mandar.
Não restam dúvidas de que o número de pessoas aptas a serem cidadãs depende do tipo de governo que existe num Estado. Aristóteles divide os tipos de governo em dois grandes grupos: os que governam em favor dos interesses privados (do tirano, dos ricos ou da massa) e os que governam em favor do bem comum. Os primeiros são injustos e os últimos são justos. Somente é possível ser cidadão nestes, pois quando se governa em favor dos interesses privados, todo o poder está concentrado nas mãos de quem controla o Estado.
Contrariamente ao que costumamos ouvir, Aristóteles não pensa que a cidadania é um privilégio automático concedido a alguns em virtude de seu nascimento. A pergunta mais importante para Aristóteles não é: “quem pode ser cidadão?” Mas antes: “o que é que o cidadão pode fazer?” É verdade que ele não reconhece o direito de cidadania às mulheres, aos escravos, aos estrangeiros e aos menores. Contudo, 2500 anos depois, como podemos quantificar os avanços registados? Para além de ter sido legalmente suprimida a escravidão (porque, de facto, ela continua a existir em vários pontos do Globo, mesmo que de forma mais ou menos dissimulada), apenas foram incluídas as mulheres! Quando examinamos mais de perto essa inclusão, a mudança não parece muito expressiva: quantas mulheres participam, efectivamente, dos poderes do Estado?
Por outro lado, Aristóteles já denunciava a demagogia escondida sob determinados mecanismos de participação popular, introduzidos por alguns governantes: os “Conselhos”. Vistos mais de perto, estes Conselhos geralmente respondem, ao fim e ao cabo, unicamente aos comandos dos próprios governantes. Em vez de serem instrumentos de participação directa e efectiva no poder, tornam-se formas de envolvimento justificadoras do autoritarismo sob a aparência de democracia. Um governante, quando não quer ou não consegue resolver um problema, transfere-o a um Conselho. Com isso, a culpa pelo fracasso passa do governante para o povo! Em vez de ser uma prática de inclusão, torna-se uma forma de exclusão política.
Note-se, entretanto, que, enquanto para Aristóteles o cidadão deveria exercer directamente os poderes públicos (de governar, legislar e julgar), hoje, o único poder que o cidadão exerce directamente é o da escolha de seus representantes.
Por um lado, a lição que Aristóteles nos oferece é a de que, para se ser cidadão, é preciso participar efectivamente da vida da comunidade política. Ora esta participação não pode limitar-se à escolha dos nossos representantes. Ela implica o direito de exprimirmos livremente as nossas ideias e opiniões, a liberdade de exigirmos os direitos garantidos pela Constituição e pela Lei, a obrigatoriedade de cumprirmos os deveres estabelecidos na Constituição e na Lei, e o direito e liberdade de nos inserirmos activamente nas diferentes formas de organização da sociedade, responsáveis pela realização de uma vida feliz para todos.
Noutros termos, Ser cidadão é ter consciência de que se é sujeito de direitos: Direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade, enfim, direitos civis, políticos e sociais. Mas este é um dos lados da moeda. Cidadania pressupõe também deveres. O cidadão tem de ser cônscio das suas responsabilidades enquanto parte integrante de um grande e complexo organismo que é a colectividade, a Nação, o Estado, para cujo bom funcionamento todos têm de dar a sua parcela de contribuição. Somente assim se chega ao objectivo final, colectivo: a justiça, no seu sentido mais amplo, ou seja, o bem comum.
Quem é “o Deputado”?
Deputado é aquele que, por eleição, se torna membro de uma Assembléia com poderes para deliber. É um delegado. Em muitos países, chamam-se Deputados aos representantes do povo eleitos para o Parlamento.
Se olharmos para a nossa Constituição, aprovada e a vigorar desde o ano passado, o nº 1 do Artigo 141º estabelece a Assembleia Nacional como sendo o Parlamento da República de Angola. O nº 2 do mesmo artigo aponta a Assembleia Nacional como sendo “representativo de todos os angolanos, que exprime a vontade soberana do povo e exerce o poder legislativo do Estado”. O mesmo vem expresso no Artigo 3º da Lei Nº 5/10, de 6 de Abril – Lei Orgânica do Funcionamento e do Processo Legislativo da Assembleia Nacional.
Como todos os cidadãos não podem levantar-se ao mesmo tempo para dar voz aos seus problemas, às suas ansiedades, às suas aspirações, etc., escolhem, nas urnas, quem o possa fazer em seu nome. Esse alguém é o Deputado.
E o Artigo 147º da Constituição da República defende e reitera que “os Deputados são representantes de todo o povo e não apenas dos círculos eleitorais por que foram eleitos”. Por isso, a actuação, a conduta de um Deputado deve pautar-se, em todos os momentos, na busca do melhor para o Povo que representa, e não cingir-se ao mero alinhamento ao pensamento partidário porque, mesmo nas ditaduras declaradas, nenhum partido terá dimensão real de Estado.
Em Angola, e à luz da Constituição, os Deputados têm 3 grupos de competências; 3 grupos de funções, em representação do Povo que os elege, nomeadamente:
1. A Competência Representativa – referida nos Artigos 141º e 147 da Constituição, bem como no Artigo 3º da Lei 5/10;
2. A Competência Política e Legislativa – prevista nas 14 alíneas do Artigo 161º, da Constituição, nos Artigos 164º, 165º, 166º, 167º, 168º, 169º, 170º, 171º, 172º e 173 da mesma Carta Magna, bem como na própria Lei Nº 5/10; e
3. A Competência de Controlo e Fiscalização – prevista no Artigo 162º da Constituição da República, bem como na Lei Nº 5/10, exercida pelos deputados, individualmente, a nível das 9 Comissões de Trabalho Permanentes ou dos Grupos Parlamentares.
Das três funções primordiais dos Deputados a mais importante, para além da função de legislar e a de fiscalizar os actos do Executivo, é, sem dúvidas, a função representativa. Esta função, como é fácil verificar, engloba as outras duas. Com efeito, os Deputados são cidadãos escolhidos para representar o Povo no Parlamento. São escolhidos para, em nome desse Povo, elaborarem e aprovarem as leis que serão posteriormente executadas pelo Executivo – passe a tautologia – (através da Administração Central e Local do Estado) e aplicadas pelos Tribunais, desenvolvendo esforços para que essas Leis, destinadas às populações, sejam o mais justas possível, o mais coerentes possível e viradas para a prevenção e resolução, em vez de servirem para a criação de problemas e de focos de tensão, garantindo assim a sua durabilidade e longevidade. Estamos a falar da Função Legiferante, ou seja a de Legislar.
Os Deputados são escolhidos para, em nome e em representação do Povo, fiscalizarem a acção governativa, detectando e prevenindo desvios, voluntários ou involuntários, por parte das entidades a quem se dá a missão de fazer a gestão do Erário, pertença de todos nós; assegurando que as Despesas preconizadas pelo Executivo se destinam a cobrir Necessidades reais e coerentes das populações, e que as Receitas a utilizar para realizar essas Despesas são bem empregues, em suma, que o dinheiro e outros bens e património públicos sirvam o Povo, seu legítimo proprietário, em vez de servir eventuais oportunistas que, servindo-se do Poder emprestado pelo Povo, se vejam tentados a espoliar e esbulhar esse Povo, em nome de quem e para quem dizem trabalhar; a quem dizem servir.
E porque, em nome e em representação do Povo, os Deputados concedem autorização ao Executivo para utilizar recursos, muitas vezes escassos, para a realização do bem comum, esse Executivo funciona como um agente que trabalha por conta de outrem (o Povo) a quem deve, obviamente, prestar contas, através dos seus Representantes no Parlamento, ou seja, os Deputados. Referimo-nos aqui à Função Fiscalizadora.
É esta função que permite controlar e mesmo combater os actos de corrupção; uma corrupção que cresce de forma quase descontrolada e assustadora e que favorece a delapidação da coisa pública, o enriquecimento operado por varinhas mágicas e a grave e gravosa injustiça no que diz respeito à redistribuição da riqueza nacional, pertença de todos nós; uma redistribuição que nem os anunciados aumentos do salário Mínimo Nacional, nem os ajustamentos quase fictícios dos salários da função pública, conseguem arrancar, por serem inexpressivos, logo ineficientes, mesmo seguindo o Princípio da Diferenciação Positiva – que como princípio até nos parece positivo, não fora o contexto e os números envolvidos.
É esta Função Fiscalizadora que permite controlar e fazer frente à Corrupção, havendo vontade política para tal; uma Corrupçaõ que o próprio Presidente da República Eduardo dos Santos qualificou, em 2002, após o fim do conflito armado que opunha o Governo do MPLA à UNITA, de “pior mal a seguir à guerra”, e que esteve na base do surgimento de “Tolerâncias Zero”, “Leis de Probidade” duplicadas, mas que discursos recentes traduzindo a voz da alma acabaram por lhe imprimir uma surpreendente desaceleração, que nenhum angolano de bem consegue digerir, até hoje.
É essa Função Fiscalizadora dos Deputados, fundamental, crucial, que se encontra suspensa desde pouco depois da entrada em vigor da Constituição da República, o ano passado, por um surpreendente e incompreensível Despacho do Presidente da Assembleia Nacional. E a pergunta que não pára de nos assolar a mente é a seguinte: essa medida visa proteger quem e o quê?
Ora, porque os Deputados são representantes do Povo; este Povo que é o verdadeiro detentor do poder político, o único e verdadeiro soberano, deve o Representado interagir com o Representante, no sentido de saber, ter informação, sobre o trabalho que o Deputado realiza e como está a representá-lo em cada legislatura.
De um modo ideal, em Angola os deputados deveriam relacionar-se com os cidadãos representados do seguinte modo:
• Existência de um Boletim informativo, disponível para todo o território nacional, para os cidadãos que sabem e podem ler;
• Um Sítio na Internet disponível para todos os cidadãos angolanos, no país e no mundo, e que igualmente saibam ler; o sítio do Parlamento angolano na Internet há mais de três anos que está inactivo, sem que se lhe conheçam razões, plausíveis ou não, que o justifiquem;
• Um Canal Televisivo – TV Parlamento – disponível para todos os cidadãos que possam ver/ouvir, com possibilidade de ter linguagem gestual para os surdos/mudos;
• Uma Rádio Parlamento, disponível para todos os cidadãos que possam ouvir e para aqueles que não podem ver mas que o seu meio de comunicação primordial é a rádio.
E outras ideias podem ser desenvolvidas, no debate produtivo e salutar que envolva não apenas os políticos deste país mas, também, a sociedade civil.
Poder-se-á dizer que isso requer recursos e que estes são escassos. Talvez. Mas pode o país gastar milhões de dólares para trazer o Sport Lisboa e Benfica a passear-se pelas belas terras angolanas, sem que possa pretender empregar verbas para algo que diz respeito a todos os angolanos, sem excepção? Pode-se dar aos angolanos a angustia e o sofrimento de assistirem a verdadeiros esbanjamentos de dinheiros em coisas de uma futilidade incrível, para depois se alegar falta de recursos para algo que, sabe-se, só contribui para o reforço da aprendizagem e do grau de maturidade do cidadão angolano, e da própria democracia?
Outras formas de interacção são as Comissões de Trabalho Permanentes, nomeadamente a 9ª Comissão (Comissão de Direitos Humanos, Petições, Reclamações e Sugestões dos Cidadãos), que tem como atribuições, entre outras, “receber as reclamações apresentadas pelos cidadãos e enviá-las, após análise, aos organismos competentes, dando disso conhecimento aos reclamantes e acompanhando e dinamizando a sua solução” – alínea g) do Artigo 76º da Lei Nº 5/10, de 6 de Abril; “receber petições e sugestões dos cidadãos e encaminhá-las, com o respectivo parecer, ao Presidente da Assembleia Nacional” – alínea h) do Artigo 76º da mesma lei; ou “controlar a forma como as queixas e reclamações dos cidadãos são atendidas pelos organismos competentes” – alínea i) do mesmo Artigo e da mesma lei.
Círculo Provincial Eleitoral
Por outro lado, os Deputados são eleitos por dois círculos eleitorais distintos (o nacional e o provincial). Cada província elege 5 deputados à Assembleia Nacional e a Lei em vigor manda que os Deputados eleitos pelos círculos provinciais permaneçam nas respectivas províncias, deslocando-se à capital nos termos que a lei estabelece.
Cada Deputado dos círculos provinciais deve ter contacto com o seu eleitorado, deve visitar os municípios e fiscalizar se a execução do orçamento provincial está a ser realizada conforme o previsto no momento da sua aprovação, esperando-se que o fiscalizado não ponha impedimentos ao trabalho do fiscalizador.
As petições, reclamações e sugestões que o cidadão tenha, também podem e devem ser remetidas aos Deputados, seus representantes, no Círculo Provincial, efectivando e facilitando assim essa interacção necessária, desejada e salutar entre Representante e Representado; entre o Deputado e o Cidadão.
Agradeço profundamente a atenção que me foi prestada por este magnífico auditório e apresento, desde já, as minhas desculpas na eventualidade de me ter estendido, nesta prelecção, para lá do limite da vossa paciência.
Muito obrigado.
Raúl Danda
– Deputado –
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