05/07/2011

Texto de Apresentação da Prelecção de Marcolino Moco em mais um Quintas de Debate no passado dia 23 de Junho de 2011

A corrupção e a fiscalidade em Angola


Por Marcolino Moco,  Quintas de Debate - Omunga, Lobito, aos 23 de Junho de 2011

                                                            

Caros amigos
Por minha livre vontade preferiria falar de outros temas, mais próximos de matérias da minha própria especialidade, como jurista e cidadão experiente em outros domínios estruturantes, voluntariamente decidido a contribuir para a construção de uma sociedade verdadeiramente aberta e, por isso, o mais justa e estável possível, em termos do presente, mas especialmente em termos do devir.
Na verdade, falar da corrupção e fiscalidade (ou fiscalização?) dentro dos marcos de uma análise desapaixonada e não politicamente condicionada, como o tenho tentado fazer, em relação a temas da minha especialidade, não é tão simples e linear como pode parecer para muitos. É uma matéria que exige conhecimentos multidisciplinares, no domínio de diversas ciências humanas particularmente da Psicologia Humana.
No entanto, não tenho outra saída, senão dissertar de forma telegráfica, sobre este tema que me foi proposto pela Omunga, nessa sua inauguração das Quintas de Debate, no Lobito, deixando em algum pousio a capital benguelense.
Não me irei espalhar, a procura de uma definição do que seja a corrupção e as formas da sua fiscalidade ou fiscalização (talvez seja este o termo mais adequado). Importa salientar que a corrupção, quando em tão alto grau e quase total descontrolo é um mal terrível para a prevalência de uma sociedade que se queira estável e harmoniosa, em que as comunidades tanto nacional como internacional, possam confiar, por se tratar de numa plataforma atractiva para os mais diversos tipos de investimento, resultando em mais-valias auto - multiplicadoras para o desenvolvimento humano e o combate efectivo às desigualdades.

Não é segredo para ninguém, que neste particular, Angola encontra-se nos patamares mais elevados de corrupção, cujas práticas e consequências se reflectem desde os mais altos até aos mais baixos níveis. Tal é a situação, que quando frequentemente vemos autoridades de outros países, senão a negar a sua existência mas a salientar o empenho em efectivar o seu controlo, aqui são as próprias autoridades que reiteradamente reconhecem a sua existência ostensiva, deixando transparecer a sua incapacidade de pô-la sob controlo.
Após a aprovação da Constituição de 2010, o Presidente da República, na sua qualidade agora consolidada de híper chefe do Executivo, apressou-se, num exercício de mera factualidade política, a promulgar uma chamada “Lei da Probidade Administrativa” que não passa de uma mera compilação de normas que já vigoravam no país, quiçá com o mérito de terem sido condensadas num único documento. A par disso, no plano estritamente político-panfletário foi proclamada a “era da tolerância zero”.
Para mim este exercício, na sequência da forma tão anacronicamente autoritária como foi aprovada a nova constituição e anulados unilateralmente actos que haviam sido programados consensualmente para a estabilização da vida institucional do país depois de vários anos de guerras e outras anormalidades (como o foi o caso da anulação das eleições presidências que haviam sido previstas para 2009) soou a mais uma forma de atirar areia para os olhos de incautos, pretensamente incapazes de atinar com a gravidade em que anda o problema da corrupção e seu descontrolo, em Angola.

Não vamos ser tão pessimistas, para dizes que estes gestos da alta magistratura nacional não tiveram nenhum efeito. Na verdade, após a inauguração dessa era dita de tolerância zero, desencadearam-se uma série de processos crimes contra entidades de níveis até aí intocáveis, como está a acontecer presentemente com o antigo comandante provincial de Luanda, da Polícia Nacional. Mas a situação não se mantém menos graves não seu carácter ostensivo e publicamente desafiante, quando notícias reiteradas em jornais nacionais e estrangeiros e trabalhos de investigação científica como o do activista de direitos humanos Rafael Marques, nos dão conta de puros actos de mistura de negócios públicos e privados, bem como de pessoas a comprar activos por tudo o que seja canto do mundo, de valores que ninguém pode imaginar como foram obtidos, se tivermos em conta a faixa etária e a actividade económica dos que os criaram em tão pouco tempo, e quase sempre ligados por laços familiares ou outros tipos de afinidades, a entidades públicas de relevo, sem que se vislumbre algum tipo de desmentido convincente; ou que o Procurador da República e o Tribunal de Contas, desde há algum tempo tão solícitos e empenhados em arrumar a casa nos escalões de base ou intermédios, esbocem um mínimo gesto de investigação ou esclarecimento sobre esses exemplos de suspeição de tão alta dimensão.

Como costumo dizer, com esta situação, fica-se com a impressão que aqueles que desviam valores médios começam agora a ter contas com uma justiça que parece “orientada” a efectuar manobras selectivas, para que se diga que agora sim, a culpa não morre solteira, em Angola. Acontece que isso − já se percebe − começa a criar um tipo de ressentimentos de consequências que não podem ser calculadas por agora.
Entretanto, este comportamento do tipo “faz o que eu digo, não faças o que faço” de tão inconsequente, continua a fazer os seus estragos cuja dimensão vai para muito além do mero problema da corrupção e sua fiscalização, projectando-se já na cultura nacional e na formação das novas gerações.

Por vezes pretende-se aliviar a gravidade da situação afirmando-se que corrupção existe em toda a parte. É verdade. Nenhum humano, por mais alta formação ética, moral, religiosa ou o que for, sobretudo quando tem perante si a responsabilidade de gerir a coisa pública, não sentiu ou não sentirá alguma vez algum impulso, pelo menos, de obter algum benefício ilícito. Melhor do que o dito atribuído ao meu amigo e saudoso médico malangino Flávio Fernandes, segundo o qual “o cabrito come lá onde está amarrado”, eu costumo preferir o dito popular umbundo, segundo o qual: “u opika eye loku konhola koluiko”−  traduzido não literalmente: -quem está afazer o funji, sempre há-de começar a comer primeiro em relação aos que estão espera, à mesa da refeição, quanto mais não seja, para provar. É que o cabrito pode comer todo o capim à volta, lá onde está amarrado. Não haverá problemas de maior para outros cabritos que terão outro capim para comer, cada um à volta do pau em que estiver amarrado. Já imaginar que uma mamã nos traga as panelas quase vazias para a mesa, devido a provas, é mais difícil de engolir. Deixo aqui esta brincadeira em homenagem ao grande amigo João, com quem tanto gostava de gracejar.

Voltando para o mundo da seriedade, o problema da corrupção não é a sua existência universal e ligada a psicologia humana. O problema da corrupção em Angola e noutros países classificados como os mais corruptos do mundo é o seu descontrolo e a sua prática descarada nos mais altos escalões do Estado, com repercussões assustadoras a todos os níveis. Só para não nos perdermos em exemplos, e sem ofensa aos esforços visíveis que se têm efectuado no sector que refiro, se te apresentares a conduzir uma viatura com a bolsa repleta, mas sem cartas de condução estarás mais seguro, perante muitos polícias, do que se fores portador da tua carta e conduzires de carteira vazia. Que o digam os condutores dos “azulinhos”. E tudo isso com o mais amplo consenso material possível, no seio da comunidade.  

Nós, maioria dos Estados africanos, somos nações modernas em formação. Estou convencido, e tenho-o referido várias vezes, que o nosso grande problema é a falta de reflexão sobre os nossos problemas. É como se quiséssemos jogar a bola sem primeiro preparar o campo onde vamos jogar, só porque os outros já vão longe nos seus desafios, não nos interessa como prepararam os seus campos de jogo. No caso da corrupção muitos pensam que ela será eliminada com violência quando sabemos que violência só gera violência. Outros pensam, com certeza, que com algumas manobras dilatórias, mandando para a cadeia um ou outro seleccionado de pouca sorte, sem tocar minimamente na essência da questão, os cães que continuem a ladrar mas a caravana seguirá o seu caminho. E, há os ingénuos que pensam que o problema será resolvido com as próximas eleições, mesmo quando se pode ver que todos os poderosos meios de campanha eleitoral ou de difusão das mais variadas ideias estão concentrados nas mãos dos defensores do status quo corruptivo e corruptor.
 
Eu penso que para sairmos de uma forma airosa da situação complicada em que nos encontramos, no que concerne à problemática grave dos níveis altamente corrosivos da corrupção em Angola, é preciso reflectir sobre como é que chegamos a esta situação e, a partir daí, traçarmos algumas ideias para a podermos superar de forma realista. 

Eu tenho tentado dar uma contribuição dispersa neste concernente em muitas das minhas intervenções. É o que vou tentar sintetizar aqui. Mas como já vamos longe na minha dissertação fá-lo-ei na parte que se seguirá brevemente.


Como tem estado em evidência, e isso não é decorrente dessas minhas afirmações que alguém pode considerar gratuitas, motivadas por algum eventual objectivo obscuro, que não seja o de contribuir para a solução dos nossos mais graves problemas, a situação da corrupção é sobretudo grave em Angola, porque a sociedade parece ser progressivamente adormecida sobre o assunto, especialmente, quando se toca num determinado nível. O problema é que a História demonstra que essa atitude de “empurrar os assuntos com a barriga” não deixará de ter as suas consequências desastrosas num futuro próximo, pelo que urge encontramos soluções realistas, como o referi na primeira parte desta dissertação.




Primeiro, pois, as minhas conjecturas, perfunctórias que sejam, sobre o porquê de termos chegado até onde chegámos, no particular da corrupção.

Acredito que a situação está ligada a nossa história, ao tipo de colonialismo que tivemos e que se repercute no tipo de liderança política que temos tido até hoje, onde eu próprio não me excluo, tendo sido um importante dirigente do partido -estado e do início da implantação do regime democrático que está hoje, claramente, a ser desvirtuado.

Assim já me introduzi no tema da fiscalização, pois, para mim não há forma mais eficaz de fiscalização e controlo da corrupção que não seja um regime aberto, transparente verdadeiramente, democrático e dissipado de tabus e do culto à personalidade de pretensos líderes ou lideranças agarradiças ao poder.

O Estado angolano é resultante de um processo que de tão recente, pouco mais tem que um século de existência, embora no linguajar politicamente correcto, andemos a falar de cinco séculos de colonização de Angola. Há cinco séculos não existia Angola nenhuma. Havia é uma série de comunidades politicamente organizadas que nem abrangiam, em muitos casos, −tirando o reino do Congo que ia para além das actuais fronteiras de Angola − cada um dos grupos étnicos conhecidos actualmente (a título de exemplo, havia vários reinos ambundo ou kimbundo, vários reinos umbundo e vários reinos ambó e por aí além).

Neste tipo de sociedades tradicionais africanas não podia falar-se de corrupção, dada a natureza do seu modo de produção não capitalista ou socialista avançado, porque pura e simplesmente não faria sentido. O problema da corrupção e seu controlo ou fiscalização só poderia colocar-se, e coloca-se, a partir do fim das guerras de ocupação, quando na sequência do princípio da ocupação efectiva dos colonizadores europeus em África, em torno da Conferência de Berlim de 1884/85, Portugal foi “forçado” a estender o chamado “Reino de Angola e Benguela”, que apenas compreendia uma parte do litoral do actual território angolano, a todas outras comunidades autónomas que foram apressadamente integradas no que desde o 11 de Novembro de 1975 constitui o Estado moderno angolano.

Afirmar que nesse período, dominado pela ditadura salazarista, não houve casos de corrupção seria contradizer-me, quando disse acima que a corrupção é um fenómeno que acompanhará sempre o ser humano. Porém fico a espera que alguém me desminta se a situação se assemelhou sequer, ao modus vivendi que “estamos hoje com ele”.

De meados da década de 70 a 90 do século passado, vigorou a tentativa de implantação do sistema socialista do tipo soviético, em cuja estrutura directiva participei de algum modo, e por isso suspeito de me pronunciar com objectividade. Cometeram-se muitas injustiças, afastaram-se adversários por via da força, coarctaram-se liberdades como a religiosa, de pensamento e livre empreendimento económico, mesmo ao nível formal da constituição política. Porém, se alguém, que viveu ou estudou estes tempos, encontrou paralelo com o descarado despudor corruptivo de hoje, estou todo ouvidos para examinar as suas razões.

É aqui que, por enquanto de forma esquemática, encontro as causas profundas da situação calamitosa que vivemos, sem paralelo, por exemplo mesmo no quadro da chamada lusofonia pós -colonial.

Angola é um país com potencialidades colossais, especialmente no domínio de uma commodity que se chama petróleo; nasce durante uma total desagregação de ordem político-ideológica, porque a sua elite política herdou a intolerância do próprio colonizador que não abria uma fresta para ouvir os colonizados ou deixá-los conversar entre eles dentro do território sobre questões do seu futuro; isso vai resultar na saída precipitada dos criadores e administradores modernos da riqueza; e a abertura económica dos anos 90, seguida de mais uma guerra − a pós eleitoral ─ encontra um estado sem uma classe média, muito menos alta, no plano económico e financeiro. Estava chegado para nós, o momento da chamada acumulação do capital, que a Europa efectivou através da usurpação das colónias, essencialmente; aqui ela vai ser feita através de uma recolonização local com a espoliação dos recursos nacionais por parte de quem se encontrou nessa altura com as rédeas do poder político e militar. E, falando com objectividade, aparentemente, só havia duas alternativas: ou importar (reimportar) uma classe média e alta, no domínio económico e financeiro, ou viver o que vivemos hoje, em que um grupo de angolanos minoritários, instalados no poder ─ que não faz questão de por em cheque (só assim se explica a emergência da nova constituição em forma de golpe), não fossem “estranhos” a ocupa-lo e fazer o mesmo ─ entre fingir que vão desenvolvendo o país, não se dedicam a outra coisa senão enriquecer o mais depressa possível.

Evidentemente, havia uma terceira alternativa, para a qual chamei atenção em 2004 num texto escrito para o “Angolense” intitulado “ Quem agarra o torro pelos chifres?”, no qual entre muitos aspectos que pensava deverem ser resolvidos antes das eleições que se seguiriam ao acordo de paz de 2002, um importante deveria ser a questão do controlo e transparência na utilização dos fundos nacionais. Como era de esperar, ninguém me ouviu. Quando toca a corrida para as eleições, que toda agente pensa que vai ganhar, a não ser que haja fraude, os políticos africanos (de forma geral, vénia para a África do Sul de Mandela e De Clerk) não gostam de perder tempo com questões prévias, mesmo que sejam de envergadura nacional.

Para mim, aqui é que está o cerne da questão. E só abordando-a com sabedoria e discernimento é que poderemos sair disso sem arranhões, especialmente, para as futuras gerações num país tão multifacetado.

Poderia falar doutros factores: o controlo judicial, a cultura jurídica da sociedade, a transparência na comunicação social, a consciência e acção da sociedade civil (a sociedade civil, entre a qual está a Omunga tem dado o seu contributo inestimável para as mudanças positivas). Porém, todos esses factores estão, na minha óptica, condicionados à equação daquela grande variável. Que liderança será capaz de desfazer este grande nó, sem novas roturas devastadoras que agravariam ainda mais a situação?

É por causa dessa complexidade, que tem a suas raízes na história da formação do Estado- nação angolano e que tentei resumir, que tenho dado o meu acordo à ideia de uma amnistia geral sobre o enriquecimento sem causa, que se tem perigosamente alastrado e que se enxerga mesmo de olhos fechados, não obstante o fechar dos olhos de muita comunidade internacional, que já não estará connosco, como classe política governante, quando a nossa própria comunidade um dia se sentir farta e reagir por outros meios. É só olhar, e mais uma vez, para as lições que nos vêm do Norte.

Pode haver outras soluções. Quem sou eu para decretar soluções únicas!? A verdade é que temos que encontrar uma solução. Não é um problema de partidos. É um problema nacional, tal como o foi a guerra fratricida em que havíamos encalhado durante anos.

Parece-me que só depois disso se falaria com propriedade em “tolerâncias 0”.








Sem comentários: