22/06/2009

A CORRIDA À TERRA

O nosso amigo João Marcos, com o objectivo de deter mais alguma informação e poder também analisar o significado e consequências da corrida desenfreada dos empresários ao abocanhamento de grandes parcelas de terra, colocou-me algumas questões sobre o assunto.

A primeira questão será sobre o que isto representa enquanto processo e depois enquanto consequências. Vamos começar por abordar enquanto processo (a privatização selvática).

Não podemos deixar de dar umas pinceladas sobre a história do nosso país, quando abordamos o acesso e a posse da terra. Gosto sempre de lembrar que precisamente a base, a lógica, o argumento e o sentimento que levou os angolanos à luta de libertação é precisamente a necessidade de se rever e reverter (na altura) a legitimidade da posse da terra, os mecanismos e os processos de ocupação e legalização desta mesma terra. É sempre bom lembrar qual era o suporte do sistema colonial em relação à utilização da terra.

Angola encontrava-se na altura num processo de crescimento económico (muito parecido à aquele que se está a imprimir hoje em dia em Angola). Juntava duas grandes questões na sua política económica: A primeira questão era um sistema de ditadura e colonial, onde portanto não era impulsionado nem pelos direitos humanos nem pela solidariedade e respeito pela dignidade do indivíduo e pela soberania dos povos. A segunda era impulsionada pelo espírito capitalista em que o importante era o lucro.

Significa dizer que a política económica do regime colonial português juntava (e de que maneira) estes dois condimentos: o lucro rápido e imediato e o desrespeito pelo indivíduo enquanto ser humano.

Na sequência desta política, a ocupação da terra seguia estes mesmos princípios. Por conseguinte, o interesse do sistema capitalista impulsionava para a produção de mono culturas, com grande referência para as de exportação. É certo que também dava algum enfoque à produção de cereais (no planalto central), utilizando programas de extensão rural, estimulando ao mesmo tempo a tecnificação da agricultura dos camponeses, no interesse do sistema, introduzindo variedades melhoradas e de adubos químicos.

Como poderiam os latifundiários aceder a grandes porções de terra? Em primeiro lugar através da força da ocupação e em segundo lugar através da força da lei que encarnava esta mesma visão. Assim, facilmente se espoliavam as boas terras dos camponeses. Estes últimos tinham 3 possibilidades (excluindo a de lutarem pela mudança de regime): Utilizarem as terras menos produtivas e de pior qualidade, transformarem-se em mão-de-obra do novo grande proprietário ou, emigrarem para as cidades.

Legitimamente e historicamente, os latifundiários não poderiam ser nunca os proprietários da terra já que “aparentemente” o eram por resultado de um processo ilegal e injusto.

Com a independência de Angola (11 de Novembro de 1975), o governo da então República Popular de Angola, transforma a terra como património de todos, considerando-a como um bem do Estado angolano.

Nesta altura, orientava a política económica, o sistema socialista que estimulava essencialmente a propriedade estatal e a cooperativa. Neste sentido, mais uma vez o camponês angolano viu-se apartado da visão de construção da Nação. No entanto, considero um grande ganho ao considerar a terra como propriedade de Estado embora não tenha estimulado e respeitado a anciã relação dos camponeses com a terra.

Assim, como resultado desta estratégia interventiva do Estado, os grandes latifúndios foram nacionalizados, equivalendo-se a fábricas, permanecendo as suas delimitações físicas, geográficas e transformadas em empresas estatais. Os camponeses voltaram a ser mantidos como trabalhadores rurais e nunca puderam recuperar as terras ancestrais salvo aquelas em que, por diferentes razões (incapacidade do Estado de gerir directamente) durante a guerra foram de novo ocupando e desbravando.

Jamais se abordou (devendo, a meu ver, ser considerada uma falha grave) o cancelamento imediato de todos os registos de propriedade de terras cujos proprietários tivessem abandonado o país e tivessem (essas áreas agrícolas) ficado abandonadas. Isto resultaria, obviamente num novo registo (cadastro) do uso e posse da terra, o que, a meu ver, poderia vir a repor a legalidade e o reconhecimento imediato da relação do camponês e das comunidades camponesas com a terra.

Com toda a mudança ocorrida em Angola, no que refere ao que acompanhou a criação da II República, foram introduzidas grandes conquistas a nível da Constituição. Foi introduzido no artigo 10.º: “O sistema económico assenta na coexistência de diversos tipos de propriedade, pública, privada, mista, cooperativa e familiar, gozando todos de igual protecção. O Estado estimula a participação, no processo económico, de todos os agentes e de todas as formas de propriedade, criando as condições para o seu funcionamento eficaz no interesse do desenvolvimento económico nacional e da satisfação das necessidades dos cidadãos.”

Para além disso, quero ainda realçar outros aspectos da nossa actual lei constitucional que me parecem merecer serem sempre relembrados:

ARTIGO 11.º
1. A lei determina os sectores e actividades que constituem reserva do Estado.
2. Na utilização e exploração da propriedade pública, o Estado deve garantir a sua eficiência e rentabilidade, de acordo com os fins e objectivos que se propõe.
3. O Estado incentiva o desenvolvimento da iniciativa e da actividade privada, mista, cooperativa e familiar criando as condições que permitam o seu funcionamento, e apoia especialmente a pequena e média actividade económica, nos termos da lei.
4. O Estado protege o investimento estrangeiro e a propriedade de estrangeiros, nos termos da lei.
ARTIGO 12.°
1. Todos os recursos naturais existentes no solo e no subsolo, nas águas interiores, no mar territorial, na plataforma continental e na zona económica exclusiva, são propriedade do Estado que determina as condições do seu aproveitamento, utilização e exploração.
2. O Estado promove a defesa e conservação dos recursos naturais, orientando a sua exploração e aproveitamento em benefício de toda a comunidade.
3. A terra, que constitui propriedade originária do Estado, pode ser transmitida para pessoas singulares ou colectivas, tendo em vista o seu racional e integral aproveitamento, nos termos da lei.
4. O Estado respeita e protege a propriedade das pessoas, quer singulares quer colectivas e a propriedade e a posse das terras pelos camponeses, sem prejuízo da possibilidade de expropriação por utilidade pública, nos termos da lei.
ARTIGO 13.°
São considerados válidos e irreversíveis todos os efeitos jurídicos dos actos de nacionalização e confisco praticados ao abrigo da lei competente, sem prejuízo do disposto em legislação específica sobre reprivatizações.

Não pretendendo dar lições de interpretação do descrito na lei constitucional, mas para mim é claro que para além do expresso, o espírito do elaborador da lei, é o de garantir a protecção prioritária do indivíduo, da família e da comunidade (através da pequena empresa) no processo produtivo-económico. É realçável a protecção da posse das terras pelo camponês.

A implementação de um processo de reprivatização de terras (está incluído e subentendido também qualquer novo processo de privatização que tenha igual cariz) seguindo os mesmos pressupostos que orientou o processo de privatização da terra em Angola colonial, que já vimos, ausente de legitimidade e desimbuído de justiça, é logo à partida também um processo sem legitimidade e injusto.

Partindo e continuando por esta linha, tendo a lei-mãe dos angolanos, a nossa lei constitucional, como a referência analítica, todo o processo de reprivatização que não tome em conta, viole ou contrarie o nela exposto é desde logo inconstitucional.

Embora concorde com a necessidade de todos nós (e não só) investirmos no processo de desenvolvimento do país (também necessário e obrigatório), torna-se claro que estejamos também (e fundamentalmente) envolvidos e sejamos todos beneficiários do mesmo. Se o processo de crescimento económico não permitir nem a participação, nem o benefício do mesmo, pela maioria dos cidadãos, perde a sua própria lógica, contrariando o artigo 9.º da lei constitucional, que transcrevo: “O Estado orienta o desenvolvimento da economia nacional, com vista a garantir o crescimento harmonioso e equilibrado de todos os sectores e regiões do País, a utilização racional e eficiente de todas as capacidades produtivas e recursos nacionais, bem como a elevação do bem-estar e da qualidade de vida dos cidadãos.”

É também importante salientar que a possibilidade de um grande empresário obter o seu fundamental objectivo, o lucro, competindo com outros grandes empresários mundiais (que é a lei do capitalismo), em que os preços se estabelecem na razão das leis de procura e oferta, só pode fazê-lo limitando os gastos no processo produtivo. Como poderá fazê-lo? Fazendo (1) recurso à mão-de-obra para que possa explorar convenientemente uma grande extensão de terra (respeitando o que diz na constituição no artigo 12, ponto 1, que a terra é propriedade do Estado e portanto é propriedade pública e o que diz no artigo 11, ponto 2, em que o Estado deve garantir a eficiência e a rentabilidade da exploração da propriedade pública), terá que fazer reembolsos salariais injustos. Este tipo de exploração agrícola só é viável em condições desumanas que não respeitem os direitos trabalhistas. Possivelmente vamos encontrar muitos destes latifúndios num país como o nosso, onde existe pouca exigência pelos nossos direitos e, conforme foi confirmado num estudo sobre trabalho infantil desumano realizado em fazendas de Benguela. Garante também este tipo de exploração agrária, a falta de fiscalização e da penalização dos empresários infractores flagrantes da violação das leis e dos direitos dos trabalhadores.

Outra possibilidade (2) e possivelmente a mais viável, será a mecanização da produção. Neste caso, a mão-de-obra torna-se desnecessária já que é substituída pela máquina, o tractor e demais equipamento.

Depois de reflectirmos o assunto sob a vertente do processo, e por isso retornámos na história e fizemos uso e recurso da lei constitucional, para avaliar a contrariedade da reprivatização selvática (que possa ocorrer), podemos agora reflectir sob a vertente das consequências de tal tipo de reprivatização.

Que consequências teremos então? Não é muito difícil de podermos descrever. Em primeiro lugar, não é possível considerarmos o camponês como uma simples forma de produção, ou seja, encará-lo numa exclusiva visão económica. Ele é muito mais do que isso. Não podemos ter em tudo um olhar simplista de materialidade económica e produtiva. O camponês enquanto individuo, enquanto Ser Humano é muito mais que um simples factor económico. É um ente social, cultural e político, nas suas relações com os outros, mas é também um ente psicológico numa relação permanente consigo próprio. É muito importante analisarmos estes aspectos do lado humano das pessoas, dos cidadãos.

A relação do camponês com a terra é muito diferente da relação do grande empresário com a terra. Este último apenas vê o lucro que pode obter dela, enquanto o camponês tem nela o seu passado, presente e futuro. O que isto significa quando é forçadamente quebrado, na vida de um camponês (de qualquer uma pessoa)?

A lei de terras declara:
Artigo 9.º
Comunidades rurais
1. O Estado respeita e protege os direitos fundiários de que sejam titulares as comunidades rurais, incluindo aqueles que se fundam nos usos ou no costume.
2. Os terrenos das comunidades rurais podem ser expropriados por utilidade pública ou ser objecto de requisição, mediante justa indemnização.

Mas se olharmos também pelo processo produtivo-económico, o que representa a produção do sector camponês no cômputo geral da produção de alimentos em Angola? Não possuo dados mas acredito que deve representar actualmente um grande pedaço da produção nacional. Será que o empresário conseguirá substituí-lo? A que preço?

Por outro lado, tem sido moda nos discursos políticos o assunto do “ambiente”. Poderia ser simples perguntarmos (e respondermos): Qual dos processos de produção agrícola (o do camponês e o intensivo) é mais agressivo ao ambiente? Aquele que é mais natural ou aquele que faz recurso às máquinas, aos produtos químicos, às monoculturas? Onde são produzidas estas máquinas e agro tóxicos? Localmente ou importados? Quanto é necessário para se investir numa agricultura intensiva e quanto seria necessário investir-se no sector camponês para que pudesse ter uma maior produção e produtividade? E quais as consequências ambientais de ambos?

As respostas a perguntas como estas devem orientar as prioridades das políticas públicas ligadas à agricultura e desenvolvimento agrário e rural. Mas podemos ainda acrescentar outras.

Com a intensificação da agricultura de forma selvática e a invasão do mundo rural pelo grande latifundiário, vai-se incentivar o processo migratório do campo para a cidade ampliando o universo de desempregados, dos excluídos e inadaptados.

Daqui, deixo a cada um a reflexão sobre quais serão (ou são já) as consequências de todo um processo egoísta de produção agrícola, excedido de ausência de solidariedade, de desrespeito pela dignidade humana e da falta de visão de relação e integração do Homem e da Natureza.

José Patrocínio

15/06/09
Texto para o Jornal Angolense

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