14/07/2009

DO OUTRO LADO DE LÁ

Quinta-feira, 9 de Julho de 2009

Direito à residência: um panfleto constitucional ilusório?
Josué Bila

Muitos leitores deste artigo terão lido, nalgum momento, a Constituição da República de Moçambique, ainda que diagonalmente. E, certamente, terão se interessado pelo ponto 1º do artigo 55º que institui o direito de fixar residência e de circulação.Minha intenção, aqui e agora, é cogitar sobre a não efectividade desse legado de fixar residência no território moçambicano. Entretanto, não entrarei em pormenores jurídicos, sob pena de ser achado ridículo e ignorante do que realmente não duvido desconhecer. Porém, a cidadania de expressão e de imprensa impõe que interpele e indague o porquê das macromazelas residenciais em Moçambique.
Estado social e o direito de fixar residência
Então, o que pressupõe o direito de fixar residência em qualquer parte do território nacional? O que é uma residência? Haverá infra-estruturas sociais, económicas, culturais e políticas para a fixação de residência? O que significa qualquer ponto do território nacional? Se os cidadãos têm direito residencial, quem, então, tem a obrigação materializadora (desse direito)?
Posso começar por dizer que o direito de as pessoas fixarem residência em qualquer parte do território nacional exprime pressupostos vários. Apresento apenas dois. Primeiro, a existência do Estado social em todo o território moçambicano. Segundo, a existência do Estado cumpridor do dever de criar condições de residência urbana ou rural.
O Estado social se funda na base da multifacetada instituição de direitos de cidadania social, investindo o máximo dos seus recursos e talentos, para responder materialmente aos anseios dos direitos dos seus nacionais. Na verdade, o Estado social se desdobra não só na satisfação dos direitos de cidadania social; mas também direitos ligados à cidadania económica, política, cultural e espiritual. Por assim dizer, o direito à residência clama pela garantia desses direitos das pessoas.
Então, o que clama o direito à residência? Simplesmente isto: políticas públicas para residência digna em espaços parcelados e urbanizados. Isso significa que a residência será acompanhada e rodeada de arruamentos asfaltados, escolas, segurança alimentar, unidades sanitárias, creches, água canalizada, electricidade, postos de trabalho, sistemas de transporte e comunicação, casas bancário-creditícias (aqui, cogito a necessidade imperiosa de estabelecimentos de créditos bonificados para habitação), lojas e mercados económicos, convivência política, liberdade de expressão e de imprensa, segurança, salas de cinema e artísticas, livrarias, jardins públicos, lazer, espaços verdes, entre outros direitos de cidadania política, económica, social, cultural e espiritual. Não consigo pensar e focalizar uma residência ou área habitacional digna, sem estar rodeado de completude de cidadania política, económica, social, cultural e espiritual.
Na inexistência básica de infra-estruturas e direitos de cidadania já apontados, o artigo constitucional será apenas uma justificativa formal e um panfleto jurídico-constitucional ilusório, sem uma efectividade possibilitada por acções concretas do Estado, resumidas em planos exequíveis de políticas públicas e direitos humanos.
Simplesmente o seguinte: Se como cidadãos temos o direito de fixar residência em qualquer parte do território nacional, significa que os operadores (seniores) da máquina estatal moçambicana têm de ter colocado em qualquer parte do território nacional condições de uma vida digna para os cidadãos lá morarem ou aqueles que por circunstâncias várias queiram viver nesse ponto. Discutir “qualquer parte do território nacional” torna-se meio enganoso, tendo em conta os quase 900 Km2 da extensão do nosso território. Talvez a melhor colocação fosse em partes escolhidas pelo Estado e sociedade civil, desde que comunidades rurais e tradicionais não saíssem prejudicadas pela política habitacional; pelo contrário tivessem benefícios disso.
Reparem que o legislador moçambicano, ao colocar o referido artigo sem exigir dos operadores da máquina estatal a materialização do direito de fixar residência em qualquer parte do território nacional, está simplesmente a ser cúmplice da negligência no cumprimento das obrigações do Poder Executivo.
O Fundo de Fomento à Habitação é o exemplo mais revelador de quão cúmplice é o nosso Parlamento, por aprovar orçamentos e leis sobre serviços e direitos habitacionais sem, contudo, exigir a prestação de contas de andamento daquela instituição do Estado. Qual é o resultado disso? O FFH está ao serviço da arrogância e corrupção feudal dos operadores seniores e juvenis da máquina estatal. Assim, o FFH desvirtualizou os seus objectivos de se constituir em uma alternativa social viável para habitação infraestruturada de baixo e médio custo, tendo em conta o bolso dos beneficiários. Aliás, bem recentemente, lendo a Imprensa moçambicana, percebi que o FFH acaba de ser extinto, pela sua magna inoperacionalidade. Quem foi e será responsabilizado pela negligência e inoperacionalidade do mesmo?
O exemplo de habitação em Maputo
O território urbano e suburbano de Maputo faz fronteira com o de Matola e Marracuene. Matola e Marracuene têm vindo a conhecer um crescimento populacional acelerado dado à fixação de residências por pessoas que maioritariamente moravam em Maputo-cidade. Ora, os novos bairros destinados para residência na Matola e Marracuene não têm o mínimo de condições de transporte e comunicações, unidades sanitárias, postos de trabalho, água canalizada, energia eléctrica, creches, escolas de nível secundário, técnico-profissional até ao superior, bibliotecas, centros artísticos e culturais e mais, salvo raras e honrosas excepções. Nestas condições tem sido muito difícil que os cidadãos se fixem nestes bairros. Fixando-se ou não, o direito de fixar residência é violada quando no lugar em que moramos não haja condições mínimas de residência cidadã. Residência cidadã é rodeada de cidadania social, cultural, económica, política e espiritual. Reparem que, em todo território nacional, os governos de Moçambique, desde 1975, ainda não se guindaram pela política pública e direito humano à residência cidadã massificada, o que, em si, é contraproducente aos seus objectivos, plasmados na Constituição.
Pessoalmente, conheço o Município da Matola e o distrito de Marracuene. Há dezenas de bairros isolados. Isolados porque não há estradas asfaltadas que liguem uns bairros de outros; não há transporte colectivo digno, circulando carrinhas de caixa aberta; não há postos de trabalho; desestruturação económica e social e a miséria e a exclusão social são os cartões de visita; educação escolar de baixa qualidade; postos de saúde distando 30 km um do outro; sem energia eléctrica, água canalizada, centros infantários, segurança e mais. Com todos estes marasmos, por que o artigo constitucional continua?
Actualmente, Moçambique vive o fenómeno família urbana alargada um pouco por todas cidades do país. Milhares de jovens, já com idade para casamento ou já casados, continuam a viver em residências de pais ou nos quartos arrendados, por causa de factores arrolados supra e infra-mencionados.
Pontapé de saída
Já estamos com 19 anos da nova Constituição (1990-2009) e não vemos nenhuma política pública para residência incrustada em direitos humanos, mas sim uma elitização tanto do recentemente extinto Fundo de Fomento à Habitação, bem como de bairros da classe alta e média moçambicana. Em Maputo, o murro de separação entre os bairros de classe média e alta (Sommerschield), de um lado, e das camadas desfavorecidas (Polana Caniço), de outro, são uma grande demonstração de quão socialmente desiguais são as zonas residenciais, denunciando o quão falacioso e enganador é o projecto socialista e de justiça social, advogado durante os 34 anos de Independência Nacional.
Por tudo isto, o ponto 1º do artigo 55º é, neste momento, um panfleto constitucional ilusório, sem dúvidas. Lamentável.

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