OS
DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO DE ANGOLA
MAKA ÀS QUARTAS NA UNIÃO DOS
ESCRITORES DE ANGOLA
23 de Setembro de 2015
Dr. Onofre dos Santos
Muito obrigado à União
dos Escritores de Angola, uma associação que reúne pessoas que muito admiro e
estimo e que têm como ponto comum o amor às letras. Letras que cada um conhece
bem e utiliza para servirem de transporte da realidade ao sonho e com muita
frequência dos seus sonhos até à nossa realidade transformando-a...
A liberdade de
expressão é o apanágio dos escritores, sendo certo que é entre os escritores
que se regista a maior diversidade de pensamento. Assim deverá ser aqui também
nesta assembleia de actuais e futuros escritores. Embora não seja uma
assembleia deliberativa, quando daqui sairmos, cada um terá formado a sua opinião,
uns comentarão com os outros, até é possível que, mesmo sem uma deliberação se
descortine uma “maioria”.
É diferente no Parlamento.
Aí previamente está estabelecida uma maioria... uma maioria que resultou de uma
eleição. Aí o que mais frequentemente se passa não é a unanimidade de vistas, a
unanimidade de opinião, não é a harmonia, mas o confronto, ao ponto da
hostilidade.
Contudo os deputados
não se reúnem para levarem à cena um espectáculo escrito por algum autor desconhecido.
Não é uma encenação. É mais um “jogo”. As pessoas que ali entram são como “jogadores”
que se reúnem à volta de uma mesa trocando cartas. Todos querem ganhar, mas na
verdade estão tensos, por vezes sentem que são adversários, porque embora todos
queiram ganhar, não querem todos a mesma coisa. Cada um tem o seu projecto, o
seu plano de vida. Um plano de vida boa, não apenas para si, mas para todos.
Ora aí está outra coisa que lhes é comum. Ninguém joga este jogo só para ganhar
para si. Para ganhar tem de ser em nome de todos, e no interesse de todos.
Todos ali representam o Povo.
Mas tudo começa num momento original de formação da “maioria”.
O dia das eleições, um dia
ciclicamente repetido em que é possível sentir a pressão, o confronto
adensar-se, embora todos digam querer a mesma coisa, o melhor para o Povo. Mas depois do Povo escolher, durante alguns
anos “quem põe e dispõe”, ou seja, quem governa, é a maioria. É o poder... que
precisamente só é legítimo quando for consagrado nas urnas.
Mas, se foi possível um
acordo nesse momento – o momento de concorrer às eleições com um programa cujo
alvo é o cidadão eleitor - depois das
eleições é possível ainda encontrar outros
momentos em que é também possível estar de acordo. Apesar da confrontação normal
ainda se constata um outro momento em que todos, ou quase todos, se põem de
acordo. É o momento constitucional,
no qual não basta uma simples maioria, mas se requer uma maioria qualificada.
Nesse momento
definem-se as REGRAS DO JOGO. Porque há uma maioria e uma minoria que pela natureza das coisas, estarão
sempre em latente confronto e choque, todos devem pôr-se de acordo sobre um
mínimo de regras. Especialmente sobre duas ou três grandes regras.
Trata-se de um acordo
sobre quê? Sobre como actuar e resolver os seus mais do que previsíveis
DESACORDOS.
O momento em que os
jogadores políticos, todos eles escolhidos pelo Povo, definem essas regras é o
momento constitucional... e a cartilha de regras do jogo chama-se, naturalmente
CONSTITUIÇÃO!
A Constituição é isso,
a base, o conjunto das regras do jogo democrático... por isso, para as escrever
se pede o consenso...
A nossa Constituição
não foi totalmente consensual, houve quem não quisesse estar presente naquele
momento constitucional... mas sabemos que a discordância fundamental era
pequena... dizia respeito às competências do Executivo... e à sua forma de
eleição... mas creio que se pode dizer que das 244 disposições da Constituição
mais de 90% delas mereceram o acordo de todos os “jogadores”. Mais
precisamente, houve acordo sobre todas aquelas regras que estabelecem a “rotina
do jogo”... as “cartas a jogar”, os “trunfos” de que se podem valer aqueles que
estarão em minoria e como resolver as grandes controvérsias que o “jogo”
suscita...
Disse há pouco que há
duas ou três regras do jogo, regras que são afinal os princípios basilares e sobre os quais todos estiveram de acordo
nesse momento constitucional.
Quais são estes
princípios fundamentais?
O primeiro é o do Estado de Direito.
A segundo é o princípio democrático.
Vamos deixar para mais
daqui a pouco, o terceiro que é, afinal,
o mais importante de todos, na verdade o trunfo...
quando os jogadores se sentam à volta de uma mesa para um jogo de cartas
escolhem o trunfo... uma carta que tem a capacidade de poder cortar o jogo
mesmo de quem tenha uma mão cheia de cartas...
Então, nesse momento
constitucional todos estiveram em querer que a República de Angola fosse um Estado de Direito.
Mas acrescentaram...
democrático: Angola seria um Estado de
Direito democrático.
Não bastaria ter dito
simplesmente que Angola seria um Estado democrático?
Ou que Angola seria um Estado de Direito?
É uma equação composta de dois elementos... o Direito e a Democracia... Pode
haver Direito sem Democracia? E pode haver verdadeira Democracia sem Direito?
São dois polos que se
atraem reciprocamente e inevitavelmente. Um não pode prescindir do outro. O que
está na base da democracia é o princípio da igualdade e da liberdade individual
que tem como consequência o princípio da
igualdade de participação na vida política. O meu voto é igual ao voto de cada
um dos outros membros da minha associação, da minha comunidade, do meu país. É
isto o cerne da democracia.
Mas esta ideia base de
cada homem ou mulher ter direito a um voto conduz necessária e inevitavelmente sempre
que se vota à formação de uma maioria. A adopção da regra da maioria, sobre a qual não podemos deixar de estar todos de
acordo, é o princípio elementar do funcionamento do sistema político.
E
o que faz a maioria no poder?
Governa, através de leis e de actos da Administração do Estado.
Estas são as regras do
jogo: quem ganha as eleições ganha o poder. É para isso e por isso que se
realizam eleições.
Mas,
o que acontece com a minoria?
Que direitos ela tem? Tem todos os direitos que tiver sido possível inscrever
no “livrinho das regras de jogo”, ou seja na Constituição. Naquele momento constitucional, em que é
preciso um consenso o mais alargado possível, fica escrito na pedra não apenas o que pode fazer quem ganha, mas
igualmente o que não pode fazer!
E quando se está falar
do que é que a maioria, mesmo uma maioria legítima não pode fazer, estamos a
falar de limites ao poder, estamos a
falar de limites à maioria...
estamos, se quisermos usar a linguagem do jogo de cartas, eleger já não pessoas, mas trunfos, cartas capazes de cortar
a maioria....
Esses
trunfos são os direitos fundamentais. Nessa medida podemos dizer que sem eles não haveria
democracia... porque democracia não é um jogo que se joga de cinco em cinco
anos, mas todos os dias... Por isso, também, os direitos fundamentais são
condições de democracia.... não basta fazer eleições e haver uma maioria
legítima no poder, é preciso que em cada um dos 1 825 dias do mandato da
maioria, esta maioria respeite a esfera inviolável de cada indivíduo que pode
ter uma opinião, um plano de vida que não coincida com o plano do Governo
eleito e cuja liberdade não fica congelada, suspensa e muito menos suprimida
durante a vigência do mandato da maioria.
Isto tem a ver com o
terceiro princípio que se junta àqueles acima referidos. É o verdadeiro trunfo
deste jogo constitucional, não tirado da manga porque esteve sempre lá, em
todas as versões da Constituição: o princípio da dignidade humana.
Numa linguagem de jogo
de cartas, este é o trunfo do jogo, o naipe escolhido na Constituição de onde
resulta que desde os duques ao az, há toda uma sequência de trunfos, maiores ou
menores em escala, mas todos eles oponíveis à maioria. Que a maioria não pode,
nem por lei, nem por acto administrativo ou político fazer desaparecer da mesa
de jogo... porque é uma regra escrita na pedra... na Constituição!
O Estado de Direito,
escrito na Constituição significa isso mesmo... que Angola é um Estado de
direitos fundamentais.... que os reconhece como limites indisponíveis, isto é
que ele não pode apagar das regras do jogo...
Por outro lado, a
democracia é fundamental para que os direitos fundamentais tenham o seu justo
valor. Num quadro não democrático em que a separação
de poderes tenda a desaparecer dando lugar a uma concentração dos poderes do Estado, o que acontece aos direitos
individuais? Todos sabemos... esses direitos individuais sofreriam uma
inevitável desvalorização.
Por isso há uma relação
de intimidade entre o Estado de
Direito, a Democracia e a Dignidade da Pessoa Humana. Porém, mesmo quando todos
estes princípios estão reunidos na Constituição, esta não transforma a
República num paraíso idílico... porque como dissemos a democracia que começa por dar a todos uma mesma voz acaba por conduzir à formação de uma maioria e onde há uma maioria há sempre
poder e com o exercício do poder será absolutamente inevitável, uma tensão, uma
hostilidade e por vezes uma abuso de poder, que pode até ser violento...
Qual é então a trincheira, por vezes o último abrigo
dos que em minoria, por vezes muito débil mesmo, pode encontrar refúgio? O que
diz a carta magna dos jogos democráticos, a nossa Constituição? A Constituição
dá a cada jogador um trunfo, uma carta que pode jogar contra a maioria e que
lhe permite ganhar uma jogada onde de outro modo seria impossível não sair
esmagado.
Aplicada ao sistema
jurídico de Estado de Direito, e tendo em conta que o outro “jogador” é o
Estado, qual o valor dessa “carta” ou “cartas” que são os direitos fundamentais?
Os direitos fundamentais são posições
jurídicas individuais face ao Estado. Ter um direito fundamental face ao
governo democraticamente legitimado, significa ter um trunfo contra a maioria, mesmo
quando esta decide segundo os procedimentos democráticos instituídos.
Hoje, num Estado
moderno só se encontra um verdadeiro Estado de Direito onde também exista
democracia e só há democracia verdadeira num Estado de Direito. E é desta
relação entre estes dois princípios que nascem, crescem e se desenvolvem os direitos fundamentais. Mas não há, nem
podia haver direitos fundamentais absolutos.
Se fossem direitos absolutos o que estaria em causa não seria o princípio do Estado de Direito, mas o princípio democrático. Seria como se
houvesse uma regra para quem está em minoria poder subverter a maioria. Ora, porque
legitimado democraticamente pela eleição livre e universal, o poder político não
pode ficar privado da capacidade que o habilita a governar.
Por isso isto é um “jogo”
em que se permite a cada jogador individual ou em grupo desenhar e desenvolver
as suas jogadas, livremente, mas tendo que enfrentar os limites que o “livrinho
das regras” estabelece.... como um jogador pode correr para a grande área para
marcar um golo e se pode ver parado pela bandeirola que o assinala em fora de jogo... É esta parte que torna
tão interessante este, como qualquer outro jogo... os direitos fundamentais são
limites da maioria e do poder, mas eles próprios, os direitos fundamentais,
também têm, por sua vez, os seus limites.
Quando o jogo se inicia
tudo parece bem. Sente-se a tensão e a ansiedade, porque embora à partida todos
os jogadores sejam iguais um deles tem agora o verdadeiro poder em resultado do
grande campeonato que são as eleições. Com
o que se pode contar?
A primeira questão,
seria, porque continuar a jogar? Porque
no mundo e na vida os jogos não param e sucedem todos os dias. Houve eleições, uns
ganharam, outros perderam ... mas estes não deixaram, nem de pensar, nem de
sentir do mesmo modo.... a tensão que foi alta no momento eleitoral.... pode
dissipar-se a pouco e pouco mas fica latente até ao próximo jogo decisivo.
Entretanto, nem tudo serão encontros amigáveis. Os desacordos e discórdias vão
acontecer pelo caminho. Podíamos esperar outra coisa? O facto é que os
jogadores têm o direito de não se conformar... se têm um plano, um programa
diferente, não foram condenados ao silêncio ou à inacção. Há muitas formas de
actuar. Algumas em colisão com o poder. Serão legítimas, essas acções? Serão
democráticas? E se o forem, não terão limites? E quem é o árbitro que deve resolver esses desacordos ou conflitos?
Estas são as questões
que todos os dias pensamos e discutimos. São as nossas makas.
Por isso, assistimos em
Angola, como em qualquer outro Estado do mundo, especialmente naqueles que são
Estados de Direito democráticos, à pressão
do poder político sobre os direitos fundamentais ou a possibilidade da sua afectação
pontual. Porque, temos de o reconhecer, nem sempre os procedimentos democráticos garantem uma coincidência entre lei e justiça e que, mesmo quando a lei se adequa às exigências materiais
da Constituição de Estado de Direito, os actos da Administração e do poder
judicial podem constituir intervenções restritivas ilícitas nos direitos
fundamentais.
Por conseguinte, numa
sociedade pluralista, a questão das relações entre estado de Direito e
democracia, independentemente das aparências de consenso entre direito e
democracia, nunca está encerrada. Ela renasce, aberta ou implicitamente em cada
nova polémica em que a liberdade individual se confronte com os interesses e a
decisão da maioria (veja-se no plano político, a controvérsia que atravessou a
Europa a propósito do episódio das caricaturas de Maomé). A polémica todos a
conhecemos. Seria legítimo ofender os sentimentos dos que professam uma
determinada religião, para a qual são livres democraticamente? Ou estes, embora
minoritários num Estado de Direito têm algum trunfo para exibir? Como resolver,
adequadamente, este potencial conflito
entre democracia e direitos fundamentais?
O princípio unificador
nesta matéria, ou seja, o consenso obtido no momento constitucional – o momento
em que se estabeleceram as regras do jogo - é a ideia de indisponibilidade dos direitos fundamentais, de vinculação do poder político à
observância dos direitos, mesmo quando esse poder é democraticamente legitimado
e orientado à prossecução do bem comum.
Esta ideia tem na sua
base, em síntese, o reconhecimento a cada titular de direitos fundamentais de
uma dignidade como pessoa que fundamenta
a delimitação de uma esfera de autonomia e liberdade individuais que o Poder
não pode invadir..
Isto significa a
insusceptibilidade de tratamento da pessoa como mero objecto do poder estatal,
como instrumentalização ou coisificação da pessoa nas mãos do
Estado. Dessa concepção da dignidade da pessoa humana resulta para cada
indivíduo, uma margem de autonomia e liberdade pessoal que o poder do Estado
tem de respeitar.
O princípio da dignidade
da pessoa humana acaba, assim, por constituir o fundamento da concepção dos
direitos, o naipe que define os
vários trunfos, ou direitos previstos
na Constituição.
Dessa dignidade da
pessoa humana resulta que uma maioria, ainda que formada democraticamente, não
pode impor ao indivíduo, a qualquer indivíduo, concepções ou planos de vida com
que ele não concorde, por mais valiosas que essas concepções sejam tidas pela
maioria.
À luz do Estado de
Direito fundado na dignidade da pessoa humana, a opinião de cada um, e a
possibilidade de a exprimir, de lutar por ela e de viver segundo os próprios
padrões, é tão valiosa quanto a opinião de outro. Cada um tem, garantida pelo Estado de
Direito, uma esfera de autonomia e liberdade individual que a maioria não pode
comprimir ou restringir pelo simples facto de ser maioria, pelo simples facto
de a autonomia individual se orientar num sentido rejeitado ou hostilizado pela
maioria.
Mesmo num quadro de
vida democrático, a expressão de opiniões ou concepções diferentes das
defendidas pela maioria, podem ter a virtualidade de influenciar as escolhas
governamentais, o que corresponde a um exercício do direito que a todos cabe de
participar na vida pública.
Assim, podemos concluir
que os direitos fundamentais não são apenas limites intransponíveis impostos
aos poderes públicos como condições de democracia.
Isto não quer dizer que
a decisão da maioria democrática não acabe por prevalecer sobre o interesse
protegido por um direito fundamental. Quando ocorra um desacordo envolvendo direitos fundamentais não há nenhuma razão que
determine que a maioria esteja necessariamente certa ou que esteja necessariamente equivocada sobre essa questão. Não, porque seja maioria ou pela força da
maioria... mas pela força da razão, ou seja, em resultado de uma ponderação de bens desenvolvida à luz dos parâmetros constitucionais e através da qual
se atribua a um outro bem igualmente digno de protecção, em
circunstâncias em que essa compressão seja exigível, uma relevância susceptível de justificar a restrição do direito
fundamental.
Assim, por exemplo, se
alguém publicou ou pretende publicar através dos média, e no exercício da sua liberdade de expressão e de imprensa, um artigo que
afecta gravemente o direito à privacidade ou intimidade de alguém, ou atenta
contra a honra de alguém, ou divulga informações consideradas segredo de
Estado, tal como fazem todos os Estados de Direito, sem excepção, admitir-se-ão
eventualmente limitações, restrições ou mesmo o impedimento do exercício de tal
liberdade de expressão. Ou seja, nestes casos
já admitimos que a maioria política, através de lei posterior e consequente actuação da
Administração ou dos tribunais, permita ou consagre limitações ao exercício do
direito fundamental.
Por aqui se verifica que umas vezes a vontade da
maioria prevalece e outras vezes não
deve prevalecer. Umas vezes o direito
fundamental resiste e outras não. Mas, se é assim, onde fica, afinal, a
natureza do trunfo? O que resta da afirmada indisponibilidade dos direitos
fundamentais?
Para respondermos a
estas questões teremos de responder a três questões, sem as quais não conseguiremos
entender aquele aparente paradoxo:
1. Quando deve ou não haver
lugar a limitações dos direitos fundamentais?
2. Em que medida as limitações, mesmo quando
admitidas, são ou não inconstitucionais?
3. E, finalmente, quem é o
árbitro deste jogo? A quem compete verificar quando o direito
fundamental se deve impor em definitivo ou quando os direitos fundamentais
admitem cedências?
Todas estas questões
podem espelhar um desacordo, desde logo sobre a definição do direito
fundamental, sobre o seu conteúdo e sobre o seu alcance. São questões muito
difíceis todas elas. Talvez a mais fácil
de resolver seja a última, a questão do árbitro...
a escolha da entidade que deve fazer o desempate entre a maioria e a minoria
com um trunfo na mão...
Uma das razões da
grande dificuldade de resolução destes desacordos, resulta do facto de que as normas que instituem os direitos
fundamentais serem mais princípios do que regras.
De facto, naquele
momento em que se consegue o maior acordo possível, o momento constitucional, em que se requer não apenas uma maioria mas
uma maioria qualificada, os representantes do Povo, na generalidade dos casos,
consagram os direitos fundamentais com recurso a frases
lapidares ou ideias gerais e é
tudo ou quase tudo o que ficou expresso sobre o seu
alcance e conteúdo.
Daí que no mundo dos
direitos fundamentais, o desacordo
que importa posteriormente arbitrar
não seja o problema do conteúdo e alcance abstractos de liberdade de expressão,
de imprensa ou da liberdade de religião, mas saber na situação concreta, como
no caso do exemplo dado, o Governo dinamarquês poderia ou não proibir as
caricaturas que ofendem os sentimentos
religiosos islâmicos.
Outra questão é a de saber
quando há ou não lugar a limitações. A regra geral é que de todos os direitos
fundamentais são limitáveis, não há direitos absolutos, no sentido de que todos os direitos, dependendo das circunstâncias
concretas do caso e dos valores e bens dignos de protecção que se lhe oponham,
podem ter de ceder. Pode dizer-se que essa limitabilidade
decorre da própria natureza dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais, todos eles, quando são constitucionalmente
consagrados são, por natureza, iminentemente dotados de uma reserva geral de ponderação que tem precisamente aquele
sentido : independentemente da forma e força constitucional que lhe é atribuída,
eles podem ter de ceder perante maior força ou peso que apresentem no caso
concreto, os direitos, bens, princípios ou interesses de sentido contrário.
Quando o legislador
constituinte consagra um direito fundamental com um elevado grau de indeterminação e generalidade, não pode, em seguida
prever, enumerar e regular exaustivamente todas as incontáveis e hipotéticas situações da vida real em que o bem
protegido pelo direito fundamental pode vir a ser desvantajosamente afectado por razões de
incompatibilidade com a necessidade de proteger outros bens ou interesses igualmente dignos de protecção. Antes
reconhece, implicitamente, porque a própria natureza das coisas não lhe deixa
sequer outra possibilidade, que apesar da não previsão expressa, o direito
fundamental em causa, considerado como um
todo, é limitável.
Há, todavia, situações
em que a própria Constituição o legislador constituinte fez logo ali, ele
mesmo, todas as ponderações que havia a fazer e decidiu-se, intencionalmente
pela garantia, a título definitivo, do interesse fundamental em questão.
Por exemplo, quando o
legislador consagra o direito à vida,
nesta formulação genérica e relativamente indeterminada, fá-lo na sua dimensão
de direito como um todo. Neste
sentido, apesar da sua importância capital, até mesmo o direito fundamental à
vida pode ceder, em casos concretos perante outros interesses que aí apresentem
um peso superior e que podem ser o direito à vida de outro ou outros
indivíduos, interesses compulsivos de segurança do Estado e da comunidade no
seu conjunto, a própria dignidade da pessoa humana (por exemplo, para quem
considera que dela decorre o direito, em certas circunstâncias, a pôr termo à
própria vida) ou o interesse na prevenção e punição de crimes (obviamente,
também neste caso, só para quem considere que a admissibilidade excepcional da
pena de morte não viola o princípio do Estado de Direito).
Já quando o legislador
constituinte decide tratar especificamente de faculdades parcelares, garantias,
pretensões ou direitos autonomizáveis (embora integrantes do direito à vida
como um todo) e diz “é proibida a pena de
morte” ou, relativamente a outros direitos, como o direito à liberdade
pessoal, diz que é proibida a prisão
perpétua ou que a prisão preventiva
não pode durar mais do que um certo prazo pré-estabelecido, ou que são nulas as provas obtidas mediante tortura,
aqui, em qualquer destas situações, legislador ordinário, tribunais e
Administração não têm mais que ponderar ou que considerar a hipótese de
limitações a um direito assim tão clara e definitivamente regulado: só tem que
aplicar a norma constitucional. Se o não fizerem estarão a violar a garantia
constitucional, estão a cometer uma inconstitucionalidade. Estas normas, são regras.
Mas no mundo dos
direitos fundamentais, sobretudo quando nos movimentamos no plano
constitucional, estas regras são a
excepção. Na generalidade dos casos, sobretudo quando o legislador constituinte
trata o direito fundamental como um todo, na sua globalidade, as normas
constitucionais não assumem a natureza de regras,
mas antes de princípios. É o que se
verifica quando o legislador constituinte diz que é garantida a liberdade de
religião, ou a liberdade de expressão, ou o direito de propriedade.
Ora, precisamente esta
natureza estrutural de princípios, que sujeita em geral, os direitos
fundamentais a uma ponderação de interesses, implica que, apesar da sua consagração
constitucional, os direitos fundamentais podem ter que ceder perante outros bens e interesses que
apresentem, no caso concreto, um peso
que força a sua compressão ou limitação.
O interesse prosseguido
pelo Governo deve prevalecer sobre o interesse de liberdade? E a proibição ou
medida restritiva actuada pelo Governo no cumprimento daquele objectivo
respeitou os princípios da igualdade, da aptidão, da indispensabilidade, da
proporcionalidade, da razoabilidade, da determinabilidade, da segurança
jurídica, da dignidade da pessoa humana?
Do que se trata é,
então, não de arbitrar, politicamente, um
desacordo básico acerca do conteúdo dos direitos fundamentais, mas de decidir, juridicamente, o problema constitucional da eventual contradição entre a decisão, política, da maioria, e os
limites jurídicos que a Constituição do
Estado lhe impõe.
E aproximamo-nos,
assim, da última questão: a de saber quem arbitra. A quem deve ser dada a autoridade
para resolver estes conflitos ou desacordos: se a uma entidade dimanada da
maioria, por exemplo, o próprio parlamento ou uma entidade independente e
especializada, como um tribunal.
No caso acima referido
das caricaturas, se o Governo dinamarquês decidisse instaurar uma censura à
imprensa ou sancionar a publicação de caricaturas que ofendiam os sentimentos
religiosos islâmicos, a quem devia ser confiada a autoridade para resolver? Ao parlamento dinamarquês qua apoia o
Governo, ou antes um tribunal independente que deveria decidir a questão, não
do conteúdo dos direitos, mas da constitucionalidade da acção governamental. A
questão de saber se aquela proibição ou censura contrariava princípios,
direitos, liberdades ou garantias da Constituição dinamarquesa.
É a questão do árbitro, a questão de saber quem deve
ter a última palavra na decisão destas questões jurídicas relativas a direitos
fundamentais. O Governo (ou a maioria parlamentar que o apoia) ou os órgãos
independentes que em Estado de Direito administram a justiça em nome do Povo?
E devem ser todos os
tribunais ou um tribunal superior especializado em questões de
constitucionalidade?
Com efeito, a partir do
momento em que a liberdade passa a ser protegida juridicamente através dos
direitos fundamentais, é para esse tipo de questões que se transfere o
desacordo.
Se a Constituição
proíbe a pena de morte, não é pelo facto de existir um desacordo social,
político, acerca da bondade desta proibição que o problema deve ser arbitrado
no Parlamento, ou seja, decidido politicamente, e ao sabor de lógicas de
disputa eleitoral, pela maioria conjuntural; qualquer lei ordinária que reponha
ou imponha a pena de morte é pura e inapelavelmente, inconstitucional. Da mesma
forma que se a Constituição garante a liberdade de expressão ou a liberdade de
religião face ao Governo instituído e a todas as entidades públicas, não é pelo
facto de a respectiva norma
constitucional ter uma natureza principal ou um conteúdo mais ou menos
indeterminado, que um conflito do mesmo tipo perde a qualidade de disputa
jurídica, a decidir segundo parâmetros jurídicos, mais ou menos consolidados,
mais ou menos pacíficos, que vigoram em determinada ordem jurídica.
Apesar de uma
complexidade cujo tratamento preenche bibliotecas inteiras, não pode aqui ser
respondida a não ser através da ideia mais simples e, todavia, mais forte, ou
seja, a partir da própria natureza
formalmente constitucional dos direitos fundamentais. Se tratamos da
vinculação dos poderes constituídos relativamente a normas e princípios constitucionalmente consagrados, tratamos
consequentemente, de assegurar a força da
Constituição enquanto norma jurídica; isso significa, em Estado de Direito, remeter a última palavra para os tribunais e, em última instância,
para a jurisdição constitucional, por mais controversa e sempre em aberto que
esteja a questão dos limites funcionais da justiça constitucional.
A força dos direitos
fundamentais, radica assim na força da Constituição o nosso livro das regras do
jogo. Não temos outro. Devemos respeitá-lo e às regras e princípios nele
inscritos. Sobre isto há um consenso. Desacordos temos e vamos tê-los todos os
dias, antes, durante e depois de eleições. Quem deve arbitrar esses desacordos?
Poderemos não estar de acordo... mas pergunta fica, meus senhores, se não aos
tribunais e ao tribunal Constitucional em particular, a quem poderemos confiar,
em paz os nossos desacordos?