ANGOLA, MAIS UM ANO DE (in)DEPENDÊNCIA
A caminho
do 40º aniversário do 11 de Novembro, é hora de fazermos um balanço deste já
não pequeno percurso.
Normalmente,
tenho dificuldades de iniciar este meu processo de revisão e reflexão,
começando apenas a 11 de Novembro de 1975. Sinto-me sempre impulsionado e,
mesmo sem querer, revejo-me no ano anterior, em 25 de Abril de 1974.
Possivelmente
porque fora essa fase, do 25 de Abril ao 11 de Novembro, um momento de
importantes, profundas e marcantes mudanças. Foi, acredito, nesta fase onde
ficou marcado, de maneira clara, o futuro do país e o nosso actual momento. Foi
nessa altura, onde as peças se foram movimentando rapidamente no tabuleiro
político, onde foram-se contornando os interesses em jogo, ficando nítidos os
espaços de cada um, seus sonhos e posições.
DO 25 DE ABRIL AO 11 DE NOVEMBRO: DA LIBERDADE À GUERRA
É incrível
que, em pouco mais de um ano, se tenha podido viver tão intensamente momentos
tão distintos, realmente e/ou aparentemente contraditórios, que me marcam até
hoje, fazendo (ou querendo fazer) entender o presente, o processo e, fazendo-me
mantendo firme a querer continuar a acreditar que uma outra Angola é possível.
Nessa
altura, realmente parecia que se entendia e assim se demarcavam, os que eram da
esquerda e os que eram da direita, seja nos cidadãos, seja nos movimentos de
libertação ou mesmo nos partidos que aí surgiram (ou voltaram a reencarnar-se,
como a FUA, de acordo s Sócrates Dáskalos)
Lembro-me
que naquele dia, 25 de Abril, nos meus 11 anos, o meu pai chegara do trabalho,
à hora de almoço, ligeiramente aparentando alguma inquietação, alguma
expectativa, dizendo para a minha mãe, "parece que foi hoje, parece que
foi hoje". Eu e o meu irmão mais velho, o Luís Carlos, seguimo-lo até à
garagem que ele (o meu pai) teve o devido cuidado em voltar a fechar a porta
grande logo a seguir a termos entrado, e
enfiámo-nos fechados dentro do carro. O meu pai ligou a rádio e ficámos
ali em silêncio. Eu, não fazia a menor ideia do que se estava a passar mas de
pronto apercebi-me que deveria ficar calado. Nem me lembro do que o locutor
tenha dito durante o noticiário, mas vi o rosto do meu pai a sorrir e o meu pai
só conseguia dizer "foi hoje, foi hoje" e pôs-se de novo a caminho de
casa, e nós a segui-lo com o ar de quem acompanha algo importante, logo depois
a termos de novo fechado a porta da garagem. Já na cozinha, o meu pai dizia
para a minha mãe "foi hoje mas ainda temos que ter calma, vou ter mesmo
que me certificar. Precisamos de saber como as coisas estão a andar lá
(referia-se à tuga) e vermos como reage o pessoal do regime aqui"
Foi pela
primeira vez que palavras como "regime", "cá" e
"lá" começaram realmente a fazer parte, não só do meu vocabulário,
como na minha forma de ser e de pensar. Afinal havia um regime e afinal havia um
lá e um cá!
Foi a partir
de então que comecei a perceber que havia coisas que mudaram, que estavam
mudando, que precisariam de mudar. Afinal, coisas diferentes podíamos fazer.
Afinal, "agora estávamos livres". Em todos os sentidos. Lembro-me
também, que com outros amigos da mesma idade, começámos a sair mais vezes do
bairro, a pé, à boleia, para irmos para o Mercado (o local no centro da cidade
onde às tardes muitos jovens se juntavam). Aquele sentimento que não consigo
explicar, fazia-nos sentir como os mais velhos, os adultos, eramos livres.
Andávamos aos gritos, sem sabermos por quê, atirando "o povo unido nunca
mais será vencido, nunca mais será vencido". E ao perceber que podíamos
dizer isso, apenas porque afinal antes não se o podia fazer, dava uma enorme
satisfação. Eu nem sabia que antes não se podia gritar "povo unido nunca
mais será vencido". Nem que havia "povo", nesse sentido, nesse
valor! Obvio que conhecia a palavra "povo" mas não com aquele teor
que passou a carregar, a ficar-lhe intrínseco.
Depois
veio uma outra série de novas experiências. Principalmente na vida no liceu.
Começaram a criar-se comissões de estudantes. Havia listas e eleições. Recolhas
de assinaturas, cartazes, palavras de ordem, demonstrações, discussões com a
direção da escola, as greves. O mundo era outro. Os próprios professores
começavam a diferenciar-se nos seus métodos, aqueles que continuavam com os
velhos métodos de professor sabichão, o chefe, aos mais liberais,
permitindo-nos ter opiniões e discussões.
Foi o
verdadeiro sentimento de liberdade e de importância de participar. Ainda hoje
quando entendo liberdade tenho como referência, esse tempo, do valor de
liberdade. Quando falo e me refiro a liberdade, tem precisamente referência a
essa forma de sentir e de estar.
Como o meu
pai era sindicalista, acompanhei muito de perto também esse processo das
greves. Lembro-me também da primeira manifestação em que participei, com
estudantes do liceu e da escola comercial e industrial, de solidariedade com o
jornalista "António Cardoso" que se encontrava raptado em Luanda
pelas forças da FNLA. "Queremos a libertação do camarada António
Cardoso" era o que gritávamos, desde o liceu, até à "Câmara",
atual administração municipal.
Depois
começaram a sobrepor-se as cores partidárias (dos movimentos principalmente) .
Muitos amigos deixaram de se falar. Com esta sobreposição das cores políticas,
começaram os discursos a se tornar mais agressivos. As pessoas começavam a ser
mais da cor política do que de tudo o resto.
Lembro-me
depois, que foi sol de pouca dura. Foi então que também comecei a dar conta dos
que partem e dos que ficam. Tive pela primeira vez, a percepção da perda.
Fiquei sem amigos. Um a um, em pouco tempo, partiam. Instaurava-se o medo e a
incerteza.
As armas e
as fardas passaram a ser comuns nas nossas casas, pelo menos, na minha. O meu
irmão apronta-se para ir para o CIR. Tinha apenas 4 anos a mais que eu. Tinha
por isso entre os 15 e os 16 anos. Várias vezes fugiu de casa e várias vezes o
meu pai foi buscá-lo. Até que basou mesmo.
Começaram
a pairar as ameaças, as perseguições, os raptos, os assassinatos. Do nosso lado
da trincheira, do MPLA, o principal medo era a BJR. Começou a circular a
informação, que hoje há quem desminta, de que se comiam corações e outros
órgãos humanos. Se na realidade essas informações eram falsas, posso agora
dizer que foi nessa altura, então, que pude ter contacto com a manipulação da
informação e da mídia.
Nunca mais
voltei a dormir em casa, e cada noite, uma casa estranha nos recebia. Começaram
os confrontos. Havia ligeiras tréguas até que novos confrontos iniciavam e o
mapa geo-político se definiu antes da independência.
É também
nessa altura que tomo contacto pela primeira vez, com informações que
relacionam cargos públicos com desvios de dinheiros. Fomos para a rua, enquanto
estudantes, reclamar pelos 100 mil contos. Gritávamos "queremos os cem mil
contos Abrigada". Penso que Samuel Abrigada era o então ministro da saúde
do governo de transição. Se a informação era falsa ou não, o que é certo é que
tive a possibilidade, aos meus 12 anos, de saber que o poder poderia estar
relacionado com o roubo, a trafulhice.
Começou-se
a falar de alianças. Estas estavam claras. Começam, num lado, no nosso, onde me
encontrava, no MPLA, a chegar os consultores militares cubanos, fala-se da
aliança da FNLA com o então Congo Kinshasa de Mobutu e mercenários e da UNITA
com a África do Sul. O mapa começa a mudar.
Para mim, ser
da esquerda parecia-me ser muito claro. Pretendia a verdadeira independência,
contra a neo-colonização, contra o capitalismo e o imperialismo yankee.
Defendia o Poder Popular e a aliança operário-camponesa e era claramente pela
nacionalização da terra, da banca, dos recursos naturais, dos seguros, dos
transportes. Defendia a participação popular, através das comissões de
moradores, de trabalhadores e de estudantes. A saúde e a educação deveriam ser
públicas e gratuitas.
Percebi,
nessa altura, que também essas posições, ao grupo a que pertencia, permitia ter
poder para tudo e mais alguma coisa. Lembro-me por exemplo, que em certa
altura, o meu irmão, apareceu em casa com um carrão. Era um Fiat amarelo claro,
desses modelos (na altura) modernos tipo desportivo ou sport, sei lá. O meu
irmão estava, como já disse, nas FAPLA e prestava serviço na frente do Balombo.
O que ele me disse, na altura, é que "recuperara" a viatura, na
frente de combate, em que a mesma se encontrava abandonada. Realmente, era uma sorte,
poder recuperar uma viatura daquelas com chaves e tudo. O meu irmão tinha
começado a conduzir muito cedo, e não era raro que, às escondidas, tirava o
carro do meu pai para passear com os amigos. O meu irmão tinha o nome de guerra
de "Che Guevara". Agora ele teria o seu próprio carro. Uns dias
depois, numa tarde, tocam à campainha e sou eu quem vou abrir o portão. Estava
um senhor magro, branco, estreito à frente, acompanhado por mais uns outros
dois ou três negros, todos à civil. Mais tarde, o estreito, alto e branco disse
que os demais eram da polícia e queriam saber onde estava o dono daquela
viatura. Eu, inocentemente, esclareci que era o meu irmão e que o mesmo não se
encontrava. Ouvi então, que iriam levar a viatura porque teria sido furtada. Não
percebi nada na altura. Já não me recordo como, mas o que é certo é que levaram
a dita viatura. Não tinham nenhum documento, nenhum mandato, nenhum processo
contra o meu irmão, nada. Apenas assim. O meu pai ficou furioso com o meu
irmão, houve gritos, enfim, o meu irmão argumentou "pai, aquele homem tem
ligações com a BJR, denunciou os nossos e agora ele vai ver o que lhe vai
acontecer, ainda por cima ele quer levar o carro para Portugal". O que é
certo é que nunca mais me lembro de ver aquele homem estreito, alto e branco
pelas ruas, nem a viatura Fiat, amarela clara, tipo desportiva ou sport.
Muito
rapidamente, entendo afinal, que ser-se de esquerda ou de direita, tinha
obrigatoriamente que se colocar de um dos lados do mundo. A internacionalização
do conflito, coloca a "esquerda" do lado da URSS, Cuba, Bloco de
Leste, Vietnam do Sul e por aí a fora. Já a "direita", se coloca do
lado dos Estados Unidos, da África do Sul, de países africanos como o Congo
Kinshasa e assim também. Afinal o mundo está dividido e em luta permanente.
Foi,
penso, na madrugada de 3 de Novembro de 1975, que percebi, de alguma forma, o
que seria ser deslocado. É verdade que tinha assistido à partida em massa dos
meus amigos com destino ao "lá", à tuga, algum tempo antes, mas agora
poderia vivenciar. Nessa madrugada, uma enorme coluna de viaturas, de Benguela
e do Lobito, dirigiu-se a Novo Redondo, Porto Amboim e finalmente Luanda. A
nossa família e mais algumas, ficaram alojadas numa clínica abandonada no
Miramar. O Centro de Tratamento Neuro-Psicológico do Miramar. Comecei então a
perceber também sobre o que seria a luta pela comida. Enfrentei pela primeira
vez as enormes bichas para poder adquirir alguns produtos da tropa portuguesa
no Jumbo. Eram latarias de todo o tipo, de sardinhas, patês, até de queijo
fundido. Numa determinada altura desconfiava-se que as mesmas eram a causa de
muita coceira entre nós e pessoas amigas. O peixe espada ficou famoso como o
"cinturão das FAPLA" e o arroz era o alimento diário. Vivenciei as
primeiras restrições alimentares e os primeiros cartões de abastecimento.
Realmente não havia ainda os cartões de abastecimento das famosas lojas do povo
que vieram mais tarde, mas, nós os deslocados de Benguela, tínhamos um cartão
para abastecermos alguns bens, como frangos e ovos, numa comissão dos
deslocados que ficava na casa de um companheiro que também tinha fugido da
Catumbela e que era para aquelas zonas do Bairro Azul.
Chegou
então o 11 de Novembro aos sons dos bombardeamentos! Os sussurros sempre
ameaçadores de que seria, quase todos os dias, o dia em que a FNLA e a UNITA
entrariam em Luanda. Sentia-se uma mistura de pânico e de expectativa.
Ouviu-se,
na voz do Agostinho Neto, que "o bureau político do comité central do MPLA
declara perante a África e o mundo, a independência de Angola". Conhecemos
a bandeira e o hino. "Angola avante, Revolução, pelo Poder Popular, Pátria
Unida, Liberdade, um só Povo, uma só Nação"!
DE 75 A 91: A REPÚBLICA "POPULAR"
Algum
tempo depois, regressei ao Lobito. Os cubanos tinham entrado em força e os
"inimigos" a Norte e a Sul estavam a "recuar".
Já no
Lobito e de volta ao liceu, alguma coisa continuava, mas já nada era o mesmo.
Constituímos à mesma as comissões de estudantes, discutíamos os assuntos com a
direcção da escola, organizavam-se as campanhas voluntárias para descarregar
navios, distribuir leite e vacinas nos bairros, ir colher o café e o abacaxi.
Fazíamos alfabetização. Mas tudo já era diferente. Apenas eramos
"nós", Cinicamente e fingidamente apenas "nós". Eramos os
vencedores e os inimigos estavam vencidos e escorraçados. E todos nós eramos
"nós". Começa a haver as chefias, afinal os mais "nós".
Começa a haver as imposições e os silêncios. O voluntarismo termina à força do
obrigatório. Surgem os sábados vermelhos, obrigatórios. As acusações e
condenações dos que não participavam. Imediatamente passaram a ser rotulados
como inimigos ou amigos dos inimigos. Começaram a ser responsabilizados e
punidos. No liceu apanhavam faltas injustificadas e poderiam reprovar de ano.
Mas as
coisas foram mudando também em todas as áreas. Surgiram os Comissários
provinciais, municipais e comunais. As greves eram impedidas, porque
significavam alianças com o inimigo. Os bens nas lojas começam definitivamente
a escassear e surgem as famosas lojas do povo e os seus cartões de
abastecimento. Todos teríamos direito a receber igual. As bichas começaram a
fazer parte da nossa rotina. Mas este igual, não era tão igual. para além dos
esquemas, dos amiguismos e dos direitos dos mais "nós", surgem
diferenciações nas lojas. Para além das lojas do povo, passam a surgir as lojas
dos dirigentes. Afinal os mais "nós". Mas foram ainda surgindo outras
lojas mais específicas, como as dos estudantes (no Huambo dirigia-se aos
estudantes do ensino superior), as das noivas e as dos cooperantes. Afinal
precisávamos da cooperação e os estrangeiros não poderiam suportar as nossas
crises. Mais tarde, bastante mais tarde, surgem as lojas do "abastecimento
complementar" dirigidas aos "dirigentes", aos
"responsáveis", aos "técnicos superiores" e aos "técnicos
médios". Nestas lojas, estávamos designados por grupos, A, B e C.
Por mês
tínhamos um valor limite (no meu caso eram 3500 Kz, grupo A) que poderíamos ir
gastando como queríamos com alguns produtos considerados de "luxo"
como electrodomésticos e bebidas importadas. Eu, às vezes tinha que juntar
vários meses para poder comprar algo mais caro, como a minha primeira arca
frigorífica. Também fui começando a entender a candonga e o mercado negro. Por
exemplo, com uma grade de cerveja Heineken que eu comprava nessa loja, poderia
vender cá fora e comprava um bilhete de passagem, na TAAG, de ida e volta a
Lisboa.
Mas para
além desta distinção entre pessoas, havia as flagrantes diferenças geográficas.
As lojas complementares, por exemplo, durante muito tempo só existiam na nossa
capital, Luanda. Só em Luanda foi instalada uma rede de supermercados, que já
nem me lembro do nome, que vendia produtos brasileiros, o famoso kissuco que se
dizia que as mulheres aproveitavam para colocar nas faces e ficarem rosadas. Em
Luanda também surgem outras lojas específicas, como a dos trabalhadores do
petróleo.
O país
fica descaradamente e flagrantemente estratificado em grupos, em hierarquias, e
em regiões. Luanda, passou a ser o centro de tudo e de toda a atenção.
Para além
desta hierarquização e estratificação da sociedade, os poderes e a
discricionariedade foram tornando-se
reais. Afinal precisávamos ("nós") de nos defender do inimigo (os
"outros"). É assim que os Comissários passam a ser os todo poderosos
e os quem decidem sobre o que deve e não deve ser feito. Os Comissários decidem
sobre os bens e as cervejas que os noivos poderiam receber, decidem sobre os
tribunais e tudo mais. Afinal o país precisava de se defender. Todos e tudo era
mobilizado. Havia a ODP e depois as BPV. Eu jurei bandeira no Huambo, em acto
junto à Feira.
Embora
tenha parecido um avanço, no campo militar, do "nós", rapidamente
passa a haver um real recuo. O país passa a viver em ilhas e o "nós"
restringe-se fundamentalmente às cidades, capitais de províncias e de
municípios. O recolher obrigatório impôs-se. Em algumas cidades, como no
Huambo, o recolher era às 20 horas. Na maioria das demais cidades, o recolher
era às 24 horas. Afinal o Huambo era a terra dos "outros" ocupada por
"nós".
As
liberdades, por decisões dos Comissários, podiam ser reprimidas ao seu belo
prazer. Não falo sequer das liberdades políticas, mas aquelas mesmo
individuais. Por exemplo o Kundi Paiama perseguia os rastas e as meninas que
usavam bikini nas praias. A sua tropa era aterrorizadora.
Já a nível
das liberdades de pensamento, de opinião e políticas, sofrem pesado golpe. Vem
o 27 de Maio de 77. Começam as perseguições, as prisões, a tortura e os
fuzilamentos. Ninguém estava seguro porque qualquer um alguém poderia acusar-te
de seres fraccionista, apenas porque queria ficar com a tua casa, o teu carro
ou a tua esposa.
A guerra,
num determinado período, também assumiu outros contornos. Para além dos confrontos
entre militares, começou a haver os ataques a alvos civis, as famosas
emboscadas em que a Canjala era famosa e os ataques a alvos económicos.
Lembro-me numa madrugada acordar com os clarões das explosões da esfera de gás,
dos depósitos de gasolina no porto do Lobito e da companhia dos cimentos, aqui
no Lobito. Lembro-me ainda das bombas no Huambo, nos mercados do Canhe e dos
fuzilamentos públicos dos "bombistas".
As rusgas
começaram a tirar o sono à maioria dos jovens (que não fossem filhos dos mais
"nós"). A qualquer hora, principalmente durante as madrugadas, os
militares invadiam as nossas casas em busca de jovens em idade militar, para se
inserirem nas forças armadas. As rusgas também se faziam nas ruas e muitos
jovens desapareceram sem que nunca as suas famílias soubessem para onde teriam
sido levados. Muitos, ainda adolescentes, com idade inferior aos 18 anos, foram
também levados à força. Foi a altura que começo, começamos, a assistir a um novo
grande êxodo de pessoas para fora do país. Começou o medo pelas ST.
Durante
este período, é sempre importante recordar dois processos que marcaram a minha,
a nossa vida. O famoso processo dos mercenários, em que o procurador era Rui
Monteiro que na altura pedia a pena máxima e a dos "kamanguistas".
Por outro
lado, toda esta fase é acompanhada pela dependência exclusiva do petróleo. Não
é difícil de entender. A Cabinda Gulf, mesmo sendo dos yankees, é protegida.
Foi também
o período dos grandes processos de nacionalização. A terra passou imediatamente
a ser propriedade do estado, a banca, os seguros, as grandes empresas de
produção (agrícola ou industrial), os transportes, os portos, companhias
ferroviárias, marítimas e aéreas, enfim, até a maioria do circuito de comércio
era estatal. A saúde e a educação era exclusivamente pública e gratuita. Aparentemente
não se sofria de desemprego e de fome.
Ainda
neste período, morre Agostinho Neto e sobe José Eduardo dos Santos. Um dos mais
jovens presidentes de todos os tempos a nível do planeta.
No campo
militar, se na realidade tinha havido um reavivar da UNITA, os grandes combates
se desenrolaram também contra o exército sul-africano. Em 1980 é reconhecida a
independência do Zimbabwe e em 1990 acontece a independência da Namíbia. a 21
de Março.
Lembrar
ainda que, foi neste período, não importa bem quando, que se pretende
precisamente transformar o MPLA (não me lembro se já era nessa altura
"partido do trabalho") no Estado-Nação. Há um grande movimento de
recrutamento de membros. Toda a gente, indiscriminadamente, é convidada
(forçada) a ser membro do "partido". Realmente não disse de forma
acidental, que foi "forçada" a forma de recrutamento de membros. Ser
do "partido" era importante e indispensável. Era com este
"cartão de membro" que garantia o acesso às "vantagens" e à
escapadela das "desvantagens".
O pior
insulto e ameaça, era chamar ou designar alguém de "kwatcha". Então,
para se evitar receber tal insulto, ameaça ou possível perseguição, era melhor
ser-se do "partido". Para as bolsas de estudo, muito importantes
nessa época de guerra, era importante ter-se o dito "cartãozinho".
Para se beneficiar de apartamentos e outros bens, como viaturas, etc, era
milagroso ter-se o dito "cartãozito". Portanto, é obvio que todos os
malandrecos, malandrões ou dessa estirpe, entraram de imediato, sem pestanejar,
nas fileiras do "partido". Os assustados, inocentes ou não, também
foram de carreirinha, fazer parte do rebanho.
Lembro-me
que numa altura, durante esse processo, num encontro de esclarecimento desse
processo, dirigia a mesa o Dr. Panhanha, então médico veterinário, professor e
vice director da Faculdade de Ciências Agrárias. E militante activo do MPLA,
obviamente. O que mais me marcou foi a resposta que ele deu ao meu colega
Carlos Figueiredo, o Figas. Este questionou se seria livre a possibilidade de
qualquer um querer, caso concluísse que afinal o "partido" não era o
que pensava, sair do "partido". O Panhanha inicialmente começou a dar
voltas, esclarecendo que os militantes que desvirtuassem a linha do
"partido" seriam expulsos, e muitos etc, mas confrontado com a
insistência do meu colega e amigo, ele respondeu "ah claro, mas depois não
se arrependam quando vierem os benefícios para os militantes do partido"
(possivelmente não foram bem estas as palavras, mas era bem esta a sua lógica!)
Foi quando
decidi não continuar com uma relação político-partidária directa com o MPLA.
Apenas queria continuar a defender os princípios que eu, relacionava com ele,
mas de forma independente. Nunca imaginei esperar receber benefícios por ser
militante. E isso era muito visível. Por exemplo nessa altura, as lojas no
Huambo estavam quase todas fechadas, ou "às moscas". As bichas eram
feitas durante a noite, com pedras a marcar os lugares, já que havia recolher
obrigatório. No entanto, uma carrinha distribuía o pão nas casas dos membros do
comité provincial do "partido".
Ainda
nessa fase, senti de novo o peso das perdas. O meu irmão, o Luís Carlos, na
altura piloto de MI8, morria por falta de sangue, depois de ter levado um tiro
quando se deslocava do Huambo para Benguela.
Não
poderia de deixar de fazer referência, a nível internacional que se vivia muito
ainda o sonho do pan-africanismo e do movimento dos não alinhados, durante todo
este período.
DE BICESSE AO LUENA: A PAZ DO VENCEDOR
Em 1991,
voltamos a assistir a mudanças interessantes e importantes. Há acordos entre os
beligerantes, o governo (MPLA) e a UNITA. Resulta na revisão da constituição e
em muita legislação ordinária de forma a enquadrar-se e a encaixar-se no novo
figurino. Estas mudanças referem-se essencialmente a nível político e
económico. Coincidentemente ou não, também deparamos com enormes mudanças no
bloco socialista.
No campo
político, há uma reviravolta do "socialismo democrático" para a
"democracia multipartidária". Surgem as leis dos partidos políticos,
das associações, da liberdade de reunião e de manifestação, de acesso à
informação, e por aí de carreirinho. Há apertos de mão e preparam-se eleições.
Enterrou-se
(tentou-se?) a ditadura do proletariado para plantar-se a ditadura do capital!
Fala-se então do mercado livre e atrevem-se as privatizações.
No entanto
é importante lembrar, que pouco antes, assinavam-se os acordos relativos à
saída das tropas cubanas de Angola, a 10 de Janeiro de 1989.
Já nos
preparativos para as eleições, era demais perceptível que não existe um clima
de confiança. Tal como em todos os acordos que conhecemos em Angola, mesmo nos
de preparação do 11 de Novembro, apenas foi reconhecida a participação das alas
militarizadas do processo angolano. Em momento algum, foram envolvidos os
demais pensadores e cidadãos que não estivessem de um dos lados dos conflitos.
Neste
clima ocorrem as eleições. O MPLA ganha na primeira volta e José Eduardo dos
Santos e Jonas Savimbi devem disputar a presidência numa presumível segunda
volta. A tensão aumenta, a desconfiança e o discurso de fraude aumenta e daí
aos confrontos foi apenas um pequeno passo. A guerra volta a instalar-se no
país. Com outra intensidade, é claro. A guerra volta às importantes cidades e
capitais de província, incluindo Luanda.
Segundo
consta, tudo começou com um ataque das forças do governo contra apoiantes da
UNITA e da FNLA, em finais de Outubro de 1992, denominado por "massacre de
Halloween." Há ainda a tentativa de Lusaka, em 1994, com mais um acordo
esquecido.
Voltamos a
confrontarmo-nos com uma enorme onda de deslocados e a assistência humanitária
instala-se definitivamente em todo o país.
Nesta
altura, começo a trabalhar neste processo a nível do governo da província.
Ajudo a criar-se a Unidade Técnica de Apoio aos Deslocados. Mais tarde ingresso
na ADRA e posteriormente conjuntamente com outros amigos, criamos a OKUTIUKA -
Acção Para a Vida (APAV), no Caimbambo.
Vivo pela
primeira vez a experiência de, poder participar na construção da Paz sem fazer
parte de numa das partes em conflito. Antes pelo contrário, faço parte de
aproximações.
Um
importante episódio que me marcou bastante para perceber os contornos da nossa
guerra e dos interesses que possivelmente envolvia, ocorreu comigo no
Chongoroi. Como resposta à enorme pressão que fazíamos junto das agências
humanitárias internacionais, incluindo das Nações Unidas, conseguiu-se que o
próprio governo aceitasse que se desenvolvesse um plano de apoio humanitário
para as populações que viviam nas áreas da UNITA, naquele município. Foi assim
que, conjuntamente com os nossos companheiros do Chongoroi, o tio Correia e o
Vasco, de mota, deslocámo-nos várias vezes às zonas da UNITA para manter os
contactos, levantarmos os dados e prepararmos o apoio, a nível alimentar, de
saúde, educação, agrícola, etc. Conseguimos também mobilizar de forma concreta,
o Programa Alimentar Mundial (famoso PAM), a CRS e muitas outras organizações.
Este trabalho era acompanhado pelos efectivos da UNAVEN.
Numa das
nossas deslocações, eu ia numa das nossas motorizadas com o tio Correia e
acompanhados por uma viatura da UNAVEN, encontrámos a população muito excitada,
gritos, choros. Os responsáveis da UNITA estavam com cara de poucos amigos.
Como sempre, fomos encaminhados para o jango onde normalmente decorriam os
nossos encontros. O pessoal da UNITA começou a demonstrar o seu nervosismo. As
vozes começaram a alterar-se e a certa altura deram ordem para que os
representantes da UNAVEN abandonassem o local. Eram acusados de ser cúmplices
das "manobras do MPLA". Ficámos a saber que as tropas do governo
tinham atacado durante a noite e a madrugada, aquela base da UNITA, tendo
havido mortos e feridos e roubo de muitas cabeças de gado.
Eu e o meu
colega fomos "convidados a permanecer". Eu, realmente, sentia-me
bastante preocupado e com medo do que pudesse acontecer connosco ali sozinhos.
Mais tarde, fui percebendo que não havia de sinais de nervosismo em relação a
nós "O problema não é convosco. Fiquem à vontade." Mesmo com estas
palavras, eu não estava nada à vontade.
Tentámos
ficar o fingidamente mais relaxados possível e continuámos a fazer o nosso
trabalho de rotina (o que sempre fazíamos nessas visitas). O tio Correia foi
então conversar com o jovem que era o delegado da saúde. Normalmente para saber
se havia algum problema, se havia stock de medicamentos, etc. Depois da
conversa, quando o meu colega chegou-se a mim, como sempre, lhe perguntei por
novidades. Foi aí que ele me informou que o delegado da saúde lhe tinha pedido
para levar um recado para uma certa pessoa, na sede do município. Era para lhe
dizer que o seu gado também tinha sido levado pela tropa do governo no ataque
daquela noite. Foi aí que fiquei surpreendido. Afinal quem era essa pessoa que
vivia na sede e tinha o seu gado na zona da UNITA? Era nada mais nada menos do
que o secretário da JMPLA. Como o secretário da JMPLA tinha relações e até o
seu gado, sob protecção da UNITA?
Pude
então, ainda mais, perceber que a nossa guerra já nada tinha a ver com confrontos
ideológicos. Membros do MPLA eram também da UNITA, matava-se gente para roubar
bois e por aí!
Houve, a
nível internacional, o desaparecimento do espírito do pan-africanismo e é
engolido pelo tempo o movimento dos não-alinhados.
As
alianças vão se mudando também. O governo começa a avançar muito mais o seu
namoro com o ocidente, nomeadamente os Estados Unidos e também Israel. Estas
novas alianças vão ser imprescindíveis para o desfecho que conhecemos deste tão
prolongado conflito.
A CAMINHADA GALOPANTE DO POPULISMO E DO CAPITALISMO
SELVAGEM
A 22 de
Fevereiro de 2002, Jonas Savimbi é morto no leste de Angola. Em Luena, poucos
meses depois, a 4 de Abril, assinam-se os acordos entre o governo e a UNITA.
O petróleo
está em alta e aumenta-se a sua produção. Os cofres do estado vivem de boa
saúde. Começa-se a investir grandemente em infra-estruturas e desminagem.
Preparam-se as eleições legislativas. A UNITA vem debilitada das matas.
As
eleições legislativas vêm a ocorrer em 2008 com a promessa de as presidenciais
terem lugar no ano seguinte. O presidente da república, aproveitando-se deste
novo formato da assembleia nacional e do figurino político (e económico)
nacional, decide fazer a revisão da constituição em 2010, onde, o que mais se
salienta, é a acumulação de poderes na figura do presidente da república, a
dependência dos órgãos de soberania e sua submissão à presidência e a
eliminação das eleições presidenciais. Por outro lado, há um aparece aumento
das referências aos direitos.
Ainda em
2010, coincide a realização do CAN em Angola com o processo constituinte. Em
2012 ocorrem já as eleições neste novo formato, consideradas como
"atípicas".
Continuam
a verificarem-se os problemas já característicos das nossas eleições. Estas
foram marcadas pelo braço de ferro com a nomeação de Suzana Inglês para dirigir
a CNE. Depois de muita luta, tentativas de manifestação, detenções e violência
policial, finalmente Suzana é substituída no cargo.
A banca é
assaltada num único golpe. Os interesses públicos passam a ser utilizados como
forma eficaz de se satisfazer os interesses privados e de enriquecer a nova
burguesia. Afinal os mais "nós" do antigamente. Vira celebre a frase
de José Eduardo dos Santos sobre a necessidade premente de "acumulação primitiva
do capital". Lembramos muitas outras, não menos célebres como "a
democracia foi-nos imposta" e "a pobreza já a encontrei".
Com o
petróleo em alta, um investimento em grande e acelerado de infra-estruturas e o
calar das armas, estavam juntos os condimentos para tornar Angola no novo El
Dorado.
Começa o
assalto brutal às zonas urbanas e rurais. Com a justificativa de ocupações
ilegais e do interesse do Estado, começamos a dar conta e a sentir o peso do
"kamartelo". São desalojados à força milhares, dezenas de milhares,
centenas de milhares de cidadãos em toda a extensão do território nacional.
Enquanto
que no norte de África, sopram os ventos de primavera que mais tarde se viram
em verdadeiros tsunamis do deserto, aumenta, no nosso país, a já não pouca
adoração à figura do presidente da república.
As
manifestações, embora ténues e ainda meio que inibidas, não deixam de sentir o
peso da repressão. Cassule e Kamulingue são raptados e finalmente considerados
assassinados. Mata-se Ganga e julga-se Rafael Marques.
Reprime-se
flagrantemente a liberdade de imprensa e os órgãos de comunicação social são
realmente meros veículos de propaganda da elite ao entorno do presidente. A
TPA2 passa para as mãos de um dos seus filhos. O outro fica à frente do Fundo
Soberano para gerir os milhões provenientes do petróleo. Já a princesa chega
aos holofotes da fama como sendo uma das mulheres mais ricas do mundo.
Os
escândalos económicos e financeiros começam a arrebentar como cogumelos e o
sistema judiciário fica definitivamente desmascarado de ser o tentáculo da
presidência. Para além de escândalos como o do BESA e dos milhões de Bento
Cangamba na Europa, dos milhões envolvidos na compra em Espanha de material
para a polícia, vêm à luz as informações de tráfico de drogas, tráfico humano e
de escravos.
O petróleo
despenca-se e o El Dorado afunda-se que nem o Titanic. As dívidas aumentam, os
investimentos evaporam-se. Portugueses, brasileiros e cubanos pegam nas malas e
voltam a sarpar.
A
repressão aumenta e as manifestações também. Marcos Mavungo é condenado a 6
anos de cadeia e Arão Tempo continua em liberdade controlada.
Presidente
recorre à China e a outros países para contrair mais empréstimos. Prepara-se
para visitar a Rússia, Enquanto isso continua a investir na defesa com compra
de mais e novo equipamento.
Banco
Mundial e FMI visitam Angola e declaram que o governo precisa de fazer mais
cortes. Enquanto isso, as grandes empresas petrolíferas ameaçam abandonar o
país, caso não se retirem as medidas impostas por Angola que encarece o custo
de produção.
As
polémicas leis de registo eleitoral, do trabalho e da prisão preventiva, são
aprovadas para dar o toque final ao assalto.
No entanto,
Angola vai assumindo uma grande e maior visibilidade. Não como o El Dorado do
antigamente, mas como uma rainha da repressão e corrupção. O morro do Sumi e
Kalupeteka vêm à ribalta.
A oposição
consegue unir-se nas jornadas parlamentares e milhares aderem às redes de
solidariedade contra as prisões dos activistas. E a procissão ainda vai no átrio.
José
Patrocínio
16 de Setembro de
2015
Texto escrito
para Folha8
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