28/09/2015

OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO DE ANGOLA - Dr Onofre dos Santos


OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO DE ANGOLA

MAKA ÀS QUARTAS NA UNIÃO DOS ESCRITORES DE ANGOLA

23 de Setembro de 2015
Dr. Onofre dos Santos

Muito obrigado à União dos Escritores de Angola, uma associação que reúne pessoas que muito admiro e estimo e que têm como ponto comum o amor às letras. Letras que cada um conhece bem e utiliza para servirem de transporte da realidade ao sonho e com muita frequência dos seus sonhos até à nossa realidade transformando-a...

A liberdade de expressão é o apanágio dos escritores, sendo certo que é entre os escritores que se regista a maior diversidade de pensamento. Assim deverá ser aqui também nesta assembleia de actuais e futuros escritores. Embora não seja uma assembleia deliberativa, quando daqui sairmos, cada um terá formado a sua opinião, uns comentarão com os outros, até é possível que, mesmo sem uma deliberação se descortine uma “maioria”.

É diferente no Parlamento. Aí previamente está estabelecida uma maioria... uma maioria que resultou de uma eleição. Aí o que mais frequentemente se passa não é a unanimidade de vistas, a unanimidade de opinião, não é a harmonia, mas o confronto, ao ponto da hostilidade.

Contudo os deputados não se reúnem para levarem à cena um espectáculo escrito por algum autor desconhecido. Não é uma encenação. É mais um “jogo”. As pessoas que ali entram são como “jogadores” que se reúnem à volta de uma mesa trocando cartas. Todos querem ganhar, mas na verdade estão tensos, por vezes sentem que são adversários, porque embora todos queiram ganhar, não querem todos a mesma coisa. Cada um tem o seu projecto, o seu plano de vida. Um plano de vida boa, não apenas para si, mas para todos. Ora aí está outra coisa que lhes é comum. Ninguém joga este jogo só para ganhar para si. Para ganhar tem de ser em nome de todos, e no interesse de todos. Todos ali representam o Povo.

Mas tudo começa  num momento original de formação da “maioria”. O dia das eleições, um dia ciclicamente repetido em que é possível sentir a pressão, o confronto adensar-se, embora todos digam querer a mesma coisa, o melhor para o Povo.  Mas depois do Povo escolher, durante alguns anos “quem põe e dispõe”, ou seja, quem governa, é a maioria. É o poder... que precisamente só é legítimo quando for consagrado nas urnas.

Mas, se foi possível um acordo nesse momento – o momento de concorrer às eleições com um programa cujo alvo é o cidadão eleitor -  depois das eleições é possível ainda encontrar outros momentos em que é também possível estar de acordo. Apesar da confrontação normal ainda se constata um outro momento em que todos, ou quase todos, se põem de acordo. É o momento constitucional, no qual não basta uma simples maioria, mas se requer uma maioria qualificada.

Nesse momento definem-se as REGRAS DO JOGO. Porque há uma maioria e uma  minoria que pela natureza das coisas, estarão sempre em latente confronto e choque, todos devem pôr-se de acordo sobre um mínimo de regras. Especialmente sobre duas ou três grandes regras.

Trata-se de um acordo sobre quê? Sobre como actuar e resolver os seus mais do que previsíveis DESACORDOS.

O momento em que os jogadores políticos, todos eles escolhidos pelo Povo, definem essas regras é o momento constitucional... e a cartilha de regras do jogo chama-se, naturalmente CONSTITUIÇÃO!

A Constituição é isso, a base, o conjunto das regras do jogo democrático... por isso, para as escrever se pede o consenso...

A nossa Constituição não foi totalmente consensual, houve quem não quisesse estar presente naquele momento constitucional... mas sabemos que a discordância fundamental era pequena... dizia respeito às competências do Executivo... e à sua forma de eleição... mas creio que se pode dizer que das 244 disposições da Constituição mais de 90% delas mereceram o acordo de todos os “jogadores”. Mais precisamente, houve acordo sobre todas aquelas regras que estabelecem a “rotina do jogo”... as “cartas a jogar”, os “trunfos” de que se podem valer aqueles que estarão em minoria e como resolver as grandes controvérsias que o “jogo” suscita...

Disse há pouco que há duas ou três regras do jogo, regras que são afinal os princípios basilares e sobre os quais todos estiveram de acordo nesse momento constitucional.

Quais são estes princípios fundamentais?

O primeiro é o do Estado de Direito.
A segundo é o princípio democrático.

Vamos deixar para mais daqui a pouco, o terceiro que é, afinal, o mais importante de todos, na verdade o trunfo... quando os jogadores se sentam à volta de uma mesa para um jogo de cartas escolhem o trunfo... uma carta que tem a capacidade de poder cortar o jogo mesmo de quem tenha uma mão cheia de cartas...

Então, nesse momento constitucional todos estiveram em querer que a República de Angola fosse um Estado de Direito.

Mas acrescentaram... democrático: Angola seria um Estado de Direito democrático.

Não bastaria ter dito simplesmente que Angola seria um Estado democrático? Ou que Angola seria um Estado de Direito? É uma equação composta de dois elementos... o Direito e a Democracia... Pode haver Direito sem Democracia? E pode haver verdadeira Democracia sem Direito?

São dois polos que se atraem reciprocamente e inevitavelmente. Um não pode prescindir do outro. O que está na base da democracia é o princípio da igualdade e da liberdade individual que tem como consequência o  princípio da igualdade de participação na vida política. O meu voto é igual ao voto de cada um dos outros membros da minha associação, da minha comunidade, do meu país. É isto o cerne da democracia.

Mas esta ideia base de cada homem ou mulher ter direito a um voto conduz necessária e inevitavelmente sempre que se vota à formação de uma maioria. A adopção da regra da maioria, sobre a qual não podemos deixar de estar todos de acordo, é o princípio elementar do funcionamento do sistema político.

E o que faz a maioria no poder? Governa, através de leis e de actos da Administração do Estado.

Estas são as regras do jogo: quem ganha as eleições ganha o poder. É para isso e por isso que se realizam eleições.

Mas, o que acontece com a minoria? Que direitos ela tem? Tem todos os direitos que tiver sido possível inscrever no “livrinho das regras de jogo”, ou seja na Constituição.  Naquele momento constitucional, em que é preciso um consenso o mais alargado possível, fica escrito na pedra não apenas o que pode fazer quem ganha, mas igualmente o que não pode fazer!

E quando se está falar do que é que a maioria, mesmo uma maioria legítima não pode fazer, estamos a falar de limites ao poder, estamos a falar de limites à maioria... estamos, se quisermos usar a linguagem do jogo de cartas, eleger já não pessoas, mas trunfos, cartas capazes de cortar a maioria....

Esses trunfos são os direitos fundamentais. Nessa medida podemos dizer que sem eles não haveria democracia... porque democracia não é um jogo que se joga de cinco em cinco anos, mas todos os dias... Por isso, também, os direitos fundamentais são condições de democracia.... não basta fazer eleições e haver uma maioria legítima no poder, é preciso que em cada um dos 1 825 dias do mandato da maioria, esta maioria respeite a esfera inviolável de cada indivíduo que pode ter uma opinião, um plano de vida que não coincida com o plano do Governo eleito e cuja liberdade não fica congelada, suspensa e muito menos suprimida durante a vigência do mandato da maioria.

Isto tem a ver com o terceiro princípio que se junta àqueles acima referidos. É o verdadeiro trunfo deste jogo constitucional, não tirado da manga porque esteve sempre lá, em todas as versões da Constituição: o princípio da dignidade humana.

Numa linguagem de jogo de cartas, este é o trunfo do jogo, o naipe escolhido na Constituição de onde resulta que desde os duques ao az, há toda uma sequência de trunfos, maiores ou menores em escala, mas todos eles oponíveis à maioria. Que a maioria não pode, nem por lei, nem por acto administrativo ou político fazer desaparecer da mesa de jogo... porque é uma regra escrita na pedra... na Constituição!

O Estado de Direito, escrito na Constituição significa isso mesmo... que Angola é um Estado de direitos fundamentais.... que os reconhece como limites indisponíveis, isto é que ele não pode apagar das regras do jogo...

Por outro lado, a democracia é fundamental para que os direitos fundamentais tenham o seu justo valor. Num quadro não democrático em que a separação de poderes tenda a desaparecer dando lugar a uma concentração dos poderes do Estado, o que acontece aos direitos individuais? Todos sabemos... esses direitos individuais sofreriam uma inevitável desvalorização.

Por isso há uma relação de intimidade entre o Estado de Direito, a Democracia e a Dignidade da Pessoa Humana. Porém, mesmo quando todos estes princípios estão reunidos na Constituição, esta não transforma a República num paraíso idílico... porque como dissemos a democracia que começa por dar a todos uma mesma voz acaba por conduzir à formação de uma maioria e onde há uma maioria há sempre poder e com o exercício do poder será absolutamente inevitável, uma tensão, uma hostilidade e por vezes uma abuso de poder, que pode até ser violento...

Qual é então a trincheira, por vezes o último abrigo dos que em minoria, por vezes muito débil mesmo, pode encontrar refúgio? O que diz a carta magna dos jogos democráticos, a nossa Constituição? A Constituição dá a cada jogador um trunfo, uma carta que pode jogar contra a maioria e que lhe permite ganhar uma jogada onde de outro modo seria impossível não sair esmagado.

Aplicada ao sistema jurídico de Estado de Direito, e tendo em conta que o outro “jogador” é o Estado, qual o valor dessa “carta” ou “cartas” que são os direitos fundamentais? Os direitos fundamentais são posições jurídicas individuais face ao Estado. Ter um direito fundamental face ao governo democraticamente legitimado, significa ter um trunfo contra a maioria, mesmo quando esta decide segundo os procedimentos democráticos instituídos.

Hoje, num Estado moderno só se encontra um verdadeiro Estado de Direito onde também exista democracia e só há democracia verdadeira num Estado de Direito. E é desta relação entre estes dois princípios que nascem, crescem e se desenvolvem os direitos fundamentais. Mas não há, nem podia haver direitos fundamentais absolutos. Se fossem direitos absolutos o que estaria em causa não seria o princípio do Estado de Direito, mas o princípio democrático. Seria como se houvesse uma regra para quem está em minoria poder subverter a maioria. Ora, porque legitimado democraticamente pela eleição livre e universal, o poder político não pode ficar privado da capacidade que o habilita a governar.

Por isso isto é um “jogo” em que se permite a cada jogador individual ou em grupo desenhar e desenvolver as suas jogadas, livremente, mas tendo que enfrentar os limites que o “livrinho das regras” estabelece.... como um jogador pode correr para a grande área para marcar um golo e se pode ver parado pela bandeirola que o assinala em fora de jogo... É esta parte que torna tão interessante este, como qualquer outro jogo... os direitos fundamentais são limites da maioria e do poder, mas eles próprios, os direitos fundamentais, também têm, por sua vez, os seus limites.

Quando o jogo se inicia tudo parece bem. Sente-se a tensão e a ansiedade, porque embora à partida todos os jogadores sejam iguais um deles tem agora o verdadeiro poder em resultado do grande campeonato que são as eleições.  Com o que se pode contar?

A primeira questão, seria, porque continuar a jogar?  Porque no mundo e na vida os jogos não param e sucedem todos os dias. Houve eleições, uns ganharam, outros perderam ... mas estes não deixaram, nem de pensar, nem de sentir do mesmo modo.... a tensão que foi alta no momento eleitoral.... pode dissipar-se a pouco e pouco mas fica latente até ao próximo jogo decisivo. Entretanto, nem tudo serão encontros amigáveis. Os desacordos e discórdias vão acontecer pelo caminho. Podíamos esperar outra coisa? O facto é que os jogadores têm o direito de não se conformar... se têm um plano, um programa diferente, não foram condenados ao silêncio ou à inacção. Há muitas formas de actuar. Algumas em colisão com o poder. Serão legítimas, essas acções? Serão democráticas? E se o forem, não terão limites? E quem é o árbitro que deve resolver esses desacordos ou conflitos?

Estas são as questões que todos os dias pensamos e discutimos. São as nossas makas.

Por isso, assistimos em Angola, como em qualquer outro Estado do mundo, especialmente naqueles que são Estados de Direito democráticos,  à pressão do poder político sobre os direitos fundamentais ou a possibilidade da sua afectação pontual. Porque, temos de o reconhecer, nem sempre os  procedimentos democráticos  garantem uma coincidência entre lei e justiça e que, mesmo quando a lei se adequa às exigências materiais da Constituição de Estado de Direito, os actos da Administração e do poder judicial podem constituir intervenções restritivas ilícitas nos direitos fundamentais.

Por conseguinte, numa sociedade pluralista, a questão das relações entre estado de Direito e democracia, independentemente das aparências de consenso entre direito e democracia, nunca está encerrada. Ela renasce, aberta ou implicitamente em cada nova polémica em que a liberdade individual se confronte com os interesses e a decisão da maioria (veja-se no plano político, a controvérsia que atravessou a Europa a propósito do episódio das caricaturas de Maomé). A polémica todos a conhecemos. Seria legítimo ofender os sentimentos dos que professam uma determinada religião, para a qual são livres democraticamente? Ou estes, embora minoritários num Estado de Direito têm algum trunfo para exibir? Como resolver, adequadamente, este potencial conflito entre democracia e direitos fundamentais?

O princípio unificador nesta matéria, ou seja, o consenso obtido no momento constitucional – o momento em que se estabeleceram as regras do jogo - é a ideia de indisponibilidade dos direitos fundamentais, de vinculação do poder político à observância dos direitos, mesmo quando esse poder é democraticamente legitimado e orientado à prossecução do bem comum.
Esta ideia tem na sua base, em síntese, o reconhecimento a cada titular de direitos fundamentais de uma dignidade como  pessoa que fundamenta a delimitação de uma esfera de autonomia e liberdade individuais que o Poder não pode invadir..

Isto significa a insusceptibilidade de tratamento da pessoa como mero objecto do poder estatal, como instrumentalização ou coisificação da pessoa nas mãos do Estado. Dessa concepção da dignidade da pessoa humana resulta para cada indivíduo, uma margem de autonomia e liberdade pessoal que o poder do Estado tem de respeitar.

O princípio da dignidade da pessoa humana acaba, assim, por constituir o fundamento da concepção dos direitos, o naipe que define os vários trunfos, ou direitos previstos na Constituição.

Dessa dignidade da pessoa humana resulta que uma maioria, ainda que formada democraticamente, não pode impor ao indivíduo, a qualquer indivíduo, concepções ou planos de vida com que ele não concorde, por mais valiosas que essas concepções sejam tidas pela maioria.

À luz do Estado de Direito fundado na dignidade da pessoa humana, a opinião de cada um, e a possibilidade de a exprimir, de lutar por ela e de viver segundo os próprios padrões, é tão valiosa quanto a opinião de outro.  Cada um tem, garantida pelo Estado de Direito, uma esfera de autonomia e liberdade individual que a maioria não pode comprimir ou restringir pelo simples facto de ser maioria, pelo simples facto de a autonomia individual se orientar num sentido rejeitado ou hostilizado pela maioria.

Mesmo num quadro de vida democrático, a expressão de opiniões ou concepções diferentes das defendidas pela maioria, podem ter a virtualidade de influenciar as escolhas governamentais, o que corresponde a um exercício do direito que a todos cabe de participar na vida pública.

Assim, podemos concluir que os direitos fundamentais não são apenas limites intransponíveis impostos aos poderes públicos como condições de democracia.

Isto não quer dizer que a decisão da maioria democrática não acabe por prevalecer sobre o interesse protegido por um direito fundamental. Quando ocorra um desacordo envolvendo direitos fundamentais não há nenhuma razão que determine que a maioria esteja necessariamente certa ou que esteja necessariamente equivocada sobre essa questão.  Não, porque seja maioria ou pela força da maioria... mas pela força da razão, ou seja, em resultado de uma ponderação de bens desenvolvida à luz dos parâmetros constitucionais e através da qual se atribua a um outro bem igualmente digno de protecção, em circunstâncias em que essa compressão seja exigível, uma relevância susceptível de justificar a restrição do direito fundamental.

Assim, por exemplo, se alguém publicou ou pretende publicar através dos média, e no exercício  da sua liberdade  de expressão e de imprensa, um artigo que afecta gravemente o direito à privacidade ou intimidade de alguém, ou atenta contra a honra de alguém, ou divulga informações consideradas segredo de Estado, tal como fazem todos os Estados de Direito, sem excepção, admitir-se-ão eventualmente limitações, restrições ou mesmo o impedimento do exercício de tal liberdade de expressão. Ou seja, nestes casos  já admitimos que a maioria política, através de lei  posterior e consequente actuação da Administração ou dos tribunais, permita ou consagre limitações ao exercício do direito fundamental.

Por aqui  se verifica que umas vezes a vontade da maioria prevalece e outras  vezes não deve prevalecer.  Umas vezes o direito fundamental resiste e outras não. Mas, se é assim, onde fica, afinal, a natureza do trunfo? O que resta da afirmada indisponibilidade dos direitos fundamentais?

Para respondermos a estas questões teremos de responder a três questões, sem as quais não conseguiremos entender aquele aparente paradoxo:

1.       Quando deve ou não haver lugar a limitações dos direitos fundamentais?

2.       Em que medida as limitações, mesmo quando admitidas, são ou não inconstitucionais?

3.       E, finalmente, quem é o árbitro deste jogo? A quem compete verificar quando o direito fundamental se deve impor em definitivo ou quando os direitos fundamentais admitem cedências?


Todas estas questões podem espelhar um desacordo, desde logo sobre a definição do direito fundamental, sobre o seu conteúdo e sobre o seu alcance. São questões muito difíceis todas elas. Talvez a  mais fácil de resolver seja a última, a questão do árbitro... a escolha da entidade que deve fazer o desempate entre a maioria e a minoria com um trunfo na mão...

Uma das razões da grande dificuldade de resolução destes desacordos, resulta do facto de que as normas que instituem os direitos fundamentais serem mais princípios do que regras.

De facto, naquele momento em que se consegue o maior acordo possível, o momento constitucional, em que se requer não apenas uma maioria mas uma maioria qualificada, os representantes do Povo, na generalidade dos casos, consagram os direitos fundamentais com recurso a  frases lapidares ou ideias gerais e é tudo ou quase tudo o que ficou expresso sobre o seu alcance e conteúdo.

Daí que no mundo dos direitos fundamentais, o desacordo que importa posteriormente arbitrar não seja o problema do conteúdo e alcance abstractos de liberdade de expressão, de imprensa ou da liberdade de religião, mas saber na situação concreta, como no caso do exemplo dado, o Governo dinamarquês poderia ou não proibir as caricaturas  que ofendem os sentimentos religiosos islâmicos.

Outra questão é a de saber quando há ou não lugar a limitações. A regra geral é que de todos os direitos fundamentais são limitáveis, não há direitos absolutos, no sentido de que todos os direitos, dependendo das circunstâncias concretas do caso e dos valores e bens dignos de protecção que se lhe oponham, podem ter de ceder. Pode dizer-se que essa limitabilidade decorre da própria natureza dos direitos fundamentais. Os direitos  fundamentais, todos eles, quando são constitucionalmente consagrados são, por natureza, iminentemente dotados de uma reserva geral de ponderação que tem precisamente aquele sentido : independentemente da forma e força constitucional que lhe é atribuída, eles podem ter de ceder perante maior força ou peso que apresentem no caso concreto, os direitos, bens, princípios ou interesses de sentido contrário.

Quando o legislador constituinte consagra um direito fundamental com um elevado grau de indeterminação e generalidade, não pode, em seguida prever, enumerar e regular exaustivamente todas as incontáveis e hipotéticas situações da vida real em que o bem protegido pelo direito fundamental pode vir a ser desvantajosamente afectado por razões de incompatibilidade com a necessidade de proteger outros bens ou interesses igualmente dignos de protecção. Antes reconhece, implicitamente, porque a própria natureza das coisas não lhe deixa sequer outra possibilidade, que apesar da não previsão expressa, o direito fundamental em causa, considerado como um todo, é limitável.

Há, todavia, situações em que a própria Constituição o legislador constituinte fez logo ali, ele mesmo, todas as ponderações que havia a fazer e decidiu-se, intencionalmente pela garantia, a título definitivo, do interesse fundamental em questão.

Por exemplo, quando o legislador consagra o direito à vida, nesta formulação genérica e relativamente indeterminada, fá-lo na sua dimensão de direito como um todo. Neste sentido, apesar da sua importância capital, até mesmo o direito fundamental à vida pode ceder, em casos concretos perante outros interesses que aí apresentem um peso superior e que podem ser o direito à vida de outro ou outros indivíduos, interesses compulsivos de segurança do Estado e da comunidade no seu conjunto, a própria dignidade da pessoa humana (por exemplo, para quem considera que dela decorre o direito, em certas circunstâncias, a pôr termo à própria vida) ou o interesse na prevenção e punição de crimes (obviamente, também neste caso, só para quem considere que a admissibilidade excepcional da pena de morte não viola o princípio do Estado de Direito).

Já quando o legislador constituinte decide tratar especificamente de faculdades parcelares, garantias, pretensões ou direitos autonomizáveis (embora integrantes do direito à vida como um todo) e diz “é proibida a pena de morte” ou, relativamente a outros direitos, como o direito à liberdade pessoal, diz que é proibida a prisão perpétua ou que a prisão preventiva não pode durar mais do que um certo prazo pré-estabelecido, ou que são nulas as provas obtidas mediante tortura, aqui, em qualquer destas situações, legislador ordinário, tribunais e Administração não têm mais que ponderar ou que considerar a hipótese de limitações a um direito assim tão clara e definitivamente regulado: só tem que aplicar a norma constitucional. Se o não fizerem estarão a violar a garantia constitucional, estão a cometer uma inconstitucionalidade. Estas normas, são regras.

Mas no mundo dos direitos fundamentais, sobretudo quando nos movimentamos no plano constitucional, estas regras são a excepção. Na generalidade dos casos, sobretudo quando o legislador constituinte trata o direito fundamental como um todo, na sua globalidade, as normas constitucionais não assumem a natureza de regras, mas antes de princípios. É o que se verifica quando o legislador constituinte diz que é garantida a liberdade de religião, ou a liberdade de expressão, ou o direito de propriedade.

Ora, precisamente esta natureza estrutural de princípios, que sujeita em geral, os direitos fundamentais a uma  ponderação de interesses, implica que, apesar da sua consagração constitucional, os direitos fundamentais podem ter que ceder  perante outros bens e interesses que apresentem, no caso concreto, um peso que força a sua compressão ou limitação.

O interesse prosseguido pelo Governo deve prevalecer sobre o interesse de liberdade? E a proibição ou medida restritiva actuada pelo Governo no cumprimento daquele objectivo respeitou os princípios da igualdade, da aptidão, da indispensabilidade, da proporcionalidade, da razoabilidade, da determinabilidade, da segurança jurídica, da dignidade da pessoa humana?

Do que se trata é, então, não de arbitrar, politicamente, um desacordo básico acerca do conteúdo dos direitos fundamentais, mas de decidir, juridicamente, o problema constitucional da eventual contradição entre a decisão, política, da maioria, e os limites jurídicos  que a Constituição do Estado lhe impõe.

E aproximamo-nos, assim, da última questão: a de saber quem arbitra. A quem deve ser dada a autoridade para resolver estes conflitos ou desacordos: se a uma entidade dimanada da maioria, por exemplo, o próprio parlamento ou uma entidade independente e especializada, como um tribunal.

No caso acima referido das caricaturas, se o Governo dinamarquês decidisse instaurar uma censura à imprensa ou sancionar a publicação de caricaturas que ofendiam os sentimentos religiosos islâmicos, a quem devia ser confiada a autoridade para resolver? Ao parlamento dinamarquês qua apoia o Governo, ou antes um tribunal independente que deveria decidir a questão, não do conteúdo dos direitos, mas da constitucionalidade da acção governamental. A questão de saber se aquela proibição ou censura contrariava princípios, direitos, liberdades ou garantias da Constituição dinamarquesa.

É a questão do árbitro, a questão de saber quem deve ter a última palavra na decisão destas questões jurídicas relativas a direitos fundamentais. O Governo (ou a maioria parlamentar que o apoia) ou os órgãos independentes que em Estado de Direito administram a justiça em nome do Povo?

E devem ser todos os tribunais ou um tribunal superior especializado em questões de constitucionalidade?

Com efeito, a partir do momento em que a liberdade passa a ser protegida juridicamente através dos direitos fundamentais, é para esse tipo de questões que se transfere o desacordo.

Se a Constituição proíbe a pena de morte, não é pelo facto de existir um desacordo social, político, acerca da bondade desta proibição que o problema deve ser arbitrado no Parlamento, ou seja, decidido politicamente, e ao sabor de lógicas de disputa eleitoral, pela maioria conjuntural; qualquer lei ordinária que reponha ou imponha a pena de morte é pura e inapelavelmente, inconstitucional. Da mesma forma que se a Constituição garante a liberdade de expressão ou a liberdade de religião face ao Governo instituído e a todas as entidades públicas, não é pelo facto  de a respectiva norma constitucional ter uma natureza principal ou um conteúdo mais ou menos indeterminado, que um conflito do mesmo tipo perde a qualidade de disputa jurídica, a decidir segundo parâmetros jurídicos, mais ou menos consolidados, mais ou menos pacíficos, que vigoram em determinada ordem jurídica.

Apesar de uma complexidade cujo tratamento preenche bibliotecas inteiras, não pode aqui ser respondida a não ser através da ideia mais simples e, todavia, mais forte, ou seja, a partir da própria natureza formalmente constitucional dos direitos fundamentais. Se tratamos da vinculação dos poderes constituídos relativamente a normas e princípios  constitucionalmente consagrados, tratamos consequentemente, de assegurar a força da Constituição enquanto norma jurídica; isso significa, em Estado de Direito, remeter a última palavra para os tribunais e, em última instância, para a jurisdição constitucional, por mais controversa e sempre em aberto que esteja a questão dos limites funcionais da justiça constitucional.

A força dos direitos fundamentais, radica assim na força da Constituição o nosso livro das regras do jogo. Não temos outro. Devemos respeitá-lo e às regras e princípios nele inscritos. Sobre isto há um consenso. Desacordos temos e vamos tê-los todos os dias, antes, durante e depois de eleições. Quem deve arbitrar esses desacordos? Poderemos não estar de acordo... mas pergunta fica, meus senhores, se não aos tribunais e ao tribunal Constitucional em particular, a quem poderemos confiar, em paz os nossos desacordos?


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