“Em
Angola a diversificação de economia está a criar transtornos e conflitos graves”,
defendeu Domingos Fingo no Cunene
Domingos Francisco Fingo,
Director Executivo da ACC, dissertou em Ondjiva, a 11 de Agosto, no Quintas de
Debate sobre “O uso cosuetudinário das terras pelas comunidades rurais e os
impactos pela sua expropriação coersiva em Angola”.
Perante uma
assistência de pouco mais de 50 pessoas, de partidos políticos, representantes
do governo, das igrejas, da sociedade civil e das comunidades, no Hotel Águia
Verde, falou dos preceitos jurídicos e sociológicos do direito à terra e do seu
uso pelas comunidades autótones.
A actividade,
organizada pela ACC e a OMUNGA, representando o GTMDH, enquadrou-se numa série
de actividades que o grupo de monitoria decidiu desenvolver no Cunene para
acompanhar a implementação das decisões saídas do encontro de 25 de Julho,
realizado no Curoca, entre as comunidades e os representantes da Casa Civil da
Presidência da República, em relação ao conflito que opõe o projecto privado
agro-industrial “Horizonte 2020” e as comunidades.
Acompanhem o vídeo da
referida apresentação
A apresentação de
Domingos Fingo:
PALESTRA DE QUINTAS
DE DEBATE
DATA: 11
de Agosto de 2016
LOCAL: Sala
de Conferências do Hotel Águia Verde
CIDADE: Ondjiva
PROVINCIA: Cunene
TEMA: O
uso útil consuetudinário das terras pelas comunidades rurais e os impactos pela
sua expropriação coerciva em Angola.
Almejo
iniciar a dissertação do meu tema com três citações:
1. A primeira
citação é bíblica e foi extraída de João,
cap. 8vers. 32 que diz:“conheceis a verdade e a verdade vos
libertará”.
2.
A segunda citação é de um político norte-americano, muito famoso, de nome
MARTIN LUTHER KING, quando afirmava:
“
Para
alguém ter inimigos, não é preciso declarar guerra. Basta dizer o que pensa,já que
a verdade dói para os hipócritas e insensíveis”.
3.
A terceira citação é de KAIKOEWA TYIPOSSA, um membro da comunidade do Kavango,
município do Curoca, província Cunene e eu cito:
“Não nos devem considerar de
animais. Esta terra não nos foi dada por nenhum homem. Esta terra foi-nos dada
por Deus”.
Para dizer que estamos aqui, não
para criar inimigos, mas sim para dissertar um tema que, diga-se em abono da
verdade, suscita muitos litígios e indiferenças em todo o território nacional
e, particularmente, na província do Cunene, porquanto denota-se, claramente, a
inobservância de algumas cláusulas normativas que integram o ordenamento
jurídico interno em vigor, com particular destaque, a Constituição da República
de Angola, enquanto norma magna e ou outras normas infraconstitucionais em
vigor no nosso país, tais como, a Lei nº
9/04, de 09 de Novembro (Lei de Terras),
o Decreto nº 51/04, de 23 de Julho
(Norma legal que aborda a Avaliação do
Impacto Ambiental) e o Decreto-Lei
nº 16-A/95, de 15 de Dezembro (Instrumento jurídico que define os
Procedimentos Administrativos que devem ser observados, a rigor, pelos membros
do poder executivo e seus subalternos).
O
mais curioso e constrangedor no meio de tudo isto é que são os responsáveis do
poder governativoque, no exercício das suas funções pautam, não poucas vezes,
por procedimentos lesivos à dignidade e a integridade dos seus concidadãos.
Esses governantes pensam que, pelosimples facto de eles serem responsáveis,
eles são o Estado e como tal devem ser servidos, por quanto eles são servidores
do povo porque, sem o povo, o Estado não existe.
Caríssimos e caríssimas
participantes;
Fica
bem explícito aqui e agora que as organizações genuinamente defensoras de
Direitos Humanos em Angola como é o caso das 18 organizações integrantes do
GTMDH que aqui representamos, não têm bandeira partidária.
A
sua bandeira é a vida humana.
A
sua bandeira é a dignidadeda pessoa humana, não importa se é da UNITA se é do
MPLA, se é da CASA-CE, se é do PRS, se é da FNLA.
A
sua bandeira é a justiça social.
O
nosso objectivo é o cumprimento integral e imparcial, das normas em torno dos
DH em Angola.
Por
ironia de destino, quando exigimos o cumprimento das normas jurídico-legais
estabelecidas, somos tidos como adversários, somos tidos como sendo da oposição,
somos tidos como sendo insurrectos entre outras designações pejorativas,
porquanto o estatuto de insurrecto deve ser adjudicado àquele que viola a lei e
não aquele que exige o seu cumprimento.
São
estas, incrivelmente, as atribuições dolosas impostas aos activistas de DH em
Angola para coagi-los à inoperatividade funcional. Os nomes pejorativos supra-referenciados
são igualmente atribuídos a todos os angolanos críticos e inconformados com
determinadas atitudes procedimentais.
Para melhor esmiuçarmos o nosso tema
de debate, importa-nos evidenciar os seguintes questionamentos:
Quando
é que estamos perante o uso útil consuetudinário das terras?
Estamos perante
o uso útil consuetudinário das terras quando as comunidades, a título
costumeiro, usam os espaços territoriais à sua volta para a prática de
actividades úteis que permitam a sua sobrevivência. Essas actividades são
várias, entre as quais podemos destacar a pastorícia, a agricultura, a pesca, a
apicultura, a fitoterapia, entre outras.
Como
é que as comunidades rurais usam as suas terras?
O uso das
terras pelas comunidades rurais depende, em grande medida, do seu contexto. A
história do mundo revela que foram as terras que sempre garantiram a
sobrevivência das comunidades. Aliás, outra coisa não se podia esperar. É
através das lavras, e da criação de gado como bois, cabras, ovelhas, cavalos,
galinhas, etc. que as comunidades sempre sobreviveram.
Hoje, apesar do modernismo mundial,
não devemos ignorar o “modus vivendi” consuetudinário das comunidades rurais,
razão pela qual as Nações Unidas têm uma comissão específica que trata da
protecção das minorias étnico-linguísticas e culturais em todo o mundo. No
nosso caso concreto, cá no Cunene, denotamos uma riqueza étnico-cultural
suigénere na medida em que são visíveis as variantes étnicas como os ovahimba,
ovahumbi, ovandongwena, ovakuanhama, entre outras.
Como
se repartem as comunidades rurais?
Para além das
suas variantes étnico-linguísticas e culturais, em Angola há:
-
Comunidades rurais que se dedicam exclusivamente às actividades agrícolas;
- Comunidades
rurais que se dedicam exclusivamente às actividades pastoris;e
-
Comunidades rurais que se dedicam às duas actividades em simultâneo
(agricultura e pastorícia).
Nisto, as comunidades que se dedicam
à actividade agro-pastoril necessitam de maior dimensão territorial comparadas
com aquelas que se dedicam exclusivamente às actividades agrícolas. Acto
contínuo, os governantes devem saber que não é possível, as comunidades
pastoris, viverem confinadas numa aldeia porquanto precisam de grandes extensões
de terra para alimentar os seus rebanhos.
Daí a necessidade de se fazer um
estudo minucioso, envolvendo as próprias comunidades, não apenas as autoridades
tradicionais, mas todos os membros das comunidades para se evitar litígios
endógenos (intra-comunitários ou entre as próprias comunidades) e litígios exógenos
(entre as comunidades e os expropriantes).
Quais são os impactos quando se
observa uma expropriação coerciva das terrascomunitárias?
Antes de tudo,
é relevante referir que existem dois tipos de expropriações de terras
comunitárias:
-
As expropriações lícitas; e
- As expropriações ilícitas.
As
expropriações lícitas são aquelas cujos procedimentos se configuram de
conformidade com os preceitos legais previstos nos artigos 7º,15º nº 3 da Constituição da República de
Angola, conjugados com os artigos 1º e
seguintes da Resolução nº 37/09 da
Assembleia Nacional, os artigos 23º nºs
1 e 2, 37º nºs 1, 3 e 5, 51º nºs 1 e 2 e66º nº 1 alínea b) da
Lei nº 9/04 de 9 de Novembro (Lei de Terras), os artigos 4º, alínea b) e10º da Lei nº 5/98 de 19
de Junho (Lei de Bases do Ambiente),
os artigos 1º,alíneas a), b), c) e d) e 3º do Decreto-Lei nº 59/07 de 13 de Julho (que aborda matéria sobre Licenciamento Ambiental).
Em
via de regra, a licitude ou legitimidade da implementação de qualquer projecto
resultante da expropriação das terras comunitárias, só se observa se as
comunidades ou as famílias afectadas terem anuído pacificamente a expropriação.
Observando-se o contrário, estaremos diante de uma expropriação ilícita com um
pendor meramente coercivo.
Os
impactos de expropriação ilícita, porque coerciva, das terras comunitárias são
sempre, grosso modo, perniciosos para as famílias afectadas,porque:
a)
As pessoas perdem a sua auto-estima;
b)Perdem confiança nos seus governantes;
c) Cria um espírito de resistência e ou de revolta;
d) As pessoas tornam-se vulneráveis porque
ficam sem os seus kimbos, sem as suas terras férteis, sem pasto para o gado.
e) As pessoas ficam completamente desesperadas
e frustradas e, com isso, propensas para o cometimento de crimes.
f) Há muita probabilidade de surgimento de
doenças cardio- vasculares;
g) Aumenta o nível de pobreza, e de
desnutrição;
h) Os desalojados coercivamente têm tendência
de emigrar para os centros urbanos a procura de empregos precários e, na
ausência desses empregos pautam pelos assaltos para poderem sobreviver.
i) Por pressão psicológica as pessoas podem
tornar-se dementes.
j) As pessoas deficientes, idosas e viúvas
facilmente encontram a morte por desamparo;…
Conclusão:
Em
Angola a diversificação de economia está a criar transtornos e conflitos graves
porque:
Há
assalto coercivo das terras comunitárias em desato às normas legais instituídas.
Há
ocupação das margens dos rios para fins privados impedido, ou condicionando, o
acesso das comunidades à água.
Este
cenário está a acontecer na Huíla, no Cunene, em Malange,
no Kuando-Kubango, nas Lundas Norte e Sul, em Luanda, entre outras províncias
do país e os protagonistas destas usurpações são, grosso modo, aqueles membros
do executivo que se aproveitam do artigo 15º
nº 1 da Constituição, que considera a terra como sendo propriedade
originária do Estado. Esses membros aproveitam-se deste artigo convictos de que
eles são o Estado.Para aqueles que assim pensam devem, a priori, saber que o
Estado é posterior às comunidades, ou seja, as comunidades já existiam muito
antes do surgimento do Estado. São as comunidades que fizeram surgir o Estado e
não o Estado que fez surgir as comunidades.
Daía
razão da existência de dois ditames intrinsecamente ligados. O ditame grego “democracia” e o ditame jurídico-latino “pactasuntservanta”.
O
primeiro significa poder do povo.
O
segundo significa que quando se assume um pacto este pacto deve ser cumprido.
Em
síntese, estamos diante de uma situação em que o povo legitima os
representantes do poder, através das urnas e estes têm o compromisso de atender
os desejos mais nobres do povo porque entre o Estado e o povo, que é o conjunto
das comunidades, existe um pacto. Quando os representantes
escolhidos pelo povo violam o pacto assumido, surgem os conflitos de
interesses. São esses os conflitos que hoje estamos a viver um pouco por todo
este país que se chama Angola e mais concretamente na região do Kavango,
município do Curoca, província do Cunene onde foram detidos arbitrariamente 6
(seis) cidadãos. Esses cidadãos foram detidos por agentes da polícia ao serviço
de um projecto privado.
É
muito curioso porque até a polícia já desempenha a função de secúritis em
projectos privados. Tudo só para coagir o desalojamento coercivo das
comunidades!...Os 6 cidadãos haviam sido detidos e tratados cruelmente por
proporem a paralisação dos trabalhos de devastação enquanto se aguardava pela
resposta da missiva endereçada à Sua Excelência Sr. Presidente da República.
Estes cidadãos só foram postos em liberdade depois de termos feito as
intervenções que se impunham junto do representante do Ministério Público no
Xangongo, capital do município de Ombadja, a quem mui gentilmente agradecemos
por ter cumprido com o seu dever jurisdicional com lisura, transparência e
imparcialidade.
Foi
motivo de detenção “DESOBEDIÊNCIA À OBRA APROVADA PELO GOVERNO” Até hoje, não
sabemos em quê moldura penal está tipificadoeste crime.
Acto
contínuo, foram destruídos cemitérios comunitários, foram destruídos coercivamente
alguns quimbos sem a justa indemnização legalmente exigida por lei.
Mesmo
depois de termos abordado o assunto com a Delegação mandatada por Sua
Excelência Sr. Presidente da República, o gerente do projecto teve a ousadia de
desafiar tudo e todos ao afirmar no dia 5
de Agosto/16 que a devastação vai continuar porque as comunidades são culpadas
por não aceitam retirar-se. Esta atitude contraria flagrantemente as
orientações deixadas pela Delegação da Casa Civil do Presidente da República.
Intentou-se
uma acção de providência cautelar junto do Tribunal Provincial do Cunene, mas
não denotamos celeridade processual.
Para
terminar, em nome do GTMDH em Angola e em meu nome próprio manifestamos a nossa
indignação por todos os procedimentos que visam a usurpação coerciva das terras
comunitárias em Angola e particularmente na província do Cunene, em virtude
desta atitude pôr em causa a dignidade, a sobrevivência, a estabilidade, os
direitos, as liberdades e as garantias fundamentaisdos nossos concidadãos, já
que esses pressupostos legais estão consagrados na Constituição e na lei.
Pautemos
pelo diálogo e pela negociação.
Evitemos
coacção material e psicológica.
Privilegiemos
a ética e a deontologia governativa.
Saibamos
todos que estão em causa seres humanos e não objectos.
Não
façamos aos outros o que não gostaríamos que alguém nos fizesse.
Muito obrigado
Por: Domingos Francisco
Fingo
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