Como
temos vindo a divulgar, a OMUNGA conjuntamente com outros parceiros, organizou
a 25 de Novembro, em Luanda, a mesa redonda REFLECTIR CABINDA.
Francisco
Luemba, activista e jurista Cabinda, foi um dos prelectores. Também animou a edição do QUINTAS DE DEBATEde 27 de Novembro, em Benguela que também se denominou REFLECTIR CABINDA.
Acompanhem
o texto apresentado por Francisco Luemba na mesa redonda de Luanda.
O
FUNCIONAMENTO DAS INSTITUIÇÕES DE JUSTIÇA EM CABINDA
- Excelências,
-
Membros da Comissão Organizadora;
-
Participantes,
-
Convidados,
A justiça é, segundo Voltaire, a
mais sublime função do homem. A justiça, esse ideal, essa função cujo objectivo
é dar a cada um o que é seu, o que lhe cabe por direito, é, na verdade, o que
há de mais sério, mais elevado, mais digno e mais exigente de todas as
ocupações, tarefas ou profissões.
Mas a justiça avilta-se e
corrompe-se facilmente, tornando-se reles, desprezível e desonrosa quando se
aparta das virtudes que a conformam e orientam e trai os nobres objectivos que
visa.
É o que acontece, por exemplo,
quando a justiça é transformada em instrumento de vingança, de manipulação ou
deturpação da verdade ou ainda de perseguição e neutralização de pessoas que,
embora inocentes, desagradam a este ou àquele detentor do poder. A submissão e
a subserviência ao mesmo poder, a violação do princípio da separação de poderes
afastam também a justiça da sua sublimidade, nobreza e dignidade.
Vejamos, de maneira muito breve e
sumária, o funcionamento dos órgãos de justiça em Cabinda.
No âmbito desta rápida análise, são
consideradas instituições de justiça, os órgãos de investigação e instrução
processual, os órgãos da Procuradoria-geral da República e do Ministério
Público e os Tribunais. Deixamos de fora a Ordem dos Advogados.
I- Algumas generalidades sobre o funcionamento das instituições de justiça
Considerado superficialmente e
observado de fora, o funcionamento das instituições de justiça em Cabinda não
se afasta daquilo que se passa em Angola em geral.
Neste contexto, aparecem-nos como
problemas preocupantes a morosidade processual, os excessos de prisão
preventiva, algumas prisões ou detenções ilegais e uma certa dependência do
governo (não se sabendo ao certo se é por pressão ou tibieza, prudência,
excesso de zelo ou medo.
Todas essas situações existem (ou
parecem existir) - porquanto nem sempre o que parece é - do mesmo modo que se
manifestam em Benguela, no Huambo ou no Uíge, enfim, um pouco por toda essa
imensa Angola.
Porque são problemas demasiado
conhecidos e que não apresentam qualquer
peculiaridade ou especificidade em relação a Cabinda, vamos deixá-los à parte
para falarmos daquilo que parece ser exclusivo de Cabinda ou que, não sendo
específico, é ou se torna instrumento ou meio de revelação, de manipulação ou
de combate do chamado «caso Cabinda».
Neste âmbito, faremos, em primeiro
lugar, uma rápida referência à morosidade processual (analisada como denegação
de justiça); em seguida, passaremos pela perseguição política e manipulação da
verdade, pelo «confisco» ou desapossamento de bens pessoais e terminaremos pela
deturpação ou degeneração de princípios jurídicos; tudo em defesa de uma causa
ou posição política, e em violação dos direitos e liberdades das pessoas.
II- Morosidade processual interpretada como denegação de justiça
Não quisemos trazer aqui à colação -
e não trazemos - aqueles casos de excepcional morosidade processual que fazem
com que processos com mais de 10 anos de tramitação processual, estejam ainda
em primeira instância, e longe da sua conclusão. Classificamos tais casos como
simples exemplos da morosidade processual de que tanto se queixam os advogados
e os litigantes.
Nesta rubrica, incluímos dois
processos que estão no Tribunal Supremo, em sede de recurso.
II.1-
Recurso de Mpalabanda - O primeiro é
o sobejamente conhecido recurso da Associação Cívica de Cabinda, Mpalabanda. O
processo para a sua extinção correu no Tribunal Provincial de Cabinda, sob o
número 22-C/05. A sentença é de 20 de Julho de 2006, e o requerimento de
interposição do recurso deu entrada ainda no mês de Julho. De igual modo, as
Alegações de recurso foram entregues no decorrer do mês de Julho de 2006.
De então para cá, apesar de ser um
processo importante em função da sua implicação e relevância em matéria de
direitos humanos, passados já mais de oito anos, o Tribunal Supremo mantém-se
mudo e quedo. É evidente a denegação de justiça que aqui se regista.
II.2-
Recurso de Simão Sambo Chingombe Nguvulo
& Outros - O segundo caso é o processo-crime que tramitou no Tribunal
Provincial de Cabinda, sob o nº 776-B/09. Os arguidos eram trabalhadores dum
banco comercial cujo nome, de momento, calamos. Na mesma altura, foram julgados
e condenados dois grupos de trabalhadores de duas agências diferentes.
Julgados concomitantemente, foram
condenados na mesma altura (em 2010) e recorreram dos acórdãos condenatórios no
mesmo período. Enquanto um dos recursos (com três arguidos) foi decidido no
decorrer do ano 2011, o segundo recurso, que interessa a quatro réus (dos quais
três ora condenados), continua a sua longa e vagarosa tramitação.
Devido a essa morosidade, os
condenados não podem beneficiar da liberdade condicional e caminham para o
termo das suas penas de seis (6) anos. É também um caso de denegação de
justiça, sobretudo se tivermos em consideração que, tratando-se dum processo
com réus condenados e em prisão efectiva, a sua tramitação deve ser célere, com
prioridade sobre os demais processos.
Colocados em prisão preventiva em
2009, os arguidos foram condenados em 2010, e desde aquela data aguardam pela
decisão do recurso por eles interposto. O único arguido que foi absolvido
encontra-se espiritual e moralmente condenado, pois o Banco não o readmitiu,
mantém a sua conta bloqueada, e ele está impedido de encontrar novo emprego.
Vejamos os casos de perseguição
política e de manipulação da verdade.
III-
Perseguição política, denegrimento de
individualidades e manipulação da verdade
III.1-
Processo 736-C/2005 - Alegados agressores de Dom Eugénio
Dal Corso - Salvo erro, a 19 de Agosto de 2005, foi agredido, na sacristia da
Igreja ou Paróquia da Imaculada Conceição, D. Eugénio Dal Corso, então Bispo de
Saurimo e Administrador Apostólico de Cabinda.
Foram detidos, como principais
suspeitos, alguns jovens e membros do órgão que fazia as vezes de Conselho
Paroquial. Num ápice, o processo de instrução avolumou-se e ficou prenhe de
documentos: palestras e conferências proferidas por activistas da sociedade
civil, como a Conferência «A Paz em Angola e a continuação da guerra em
Cabinda», organizada pela Open Socity, em 2002; actividades de Mpalabanda,
entrevistas de determinadas personalidades da sociedade civil, etc.
Todos esses documentos não tinham
qualquer relação, directa ou indirecta, com o processo. Mas lá estavam, e lá
continuam: num decidido e desesperado esforço de manipular a verdade e a
própria instrução processual.
III.2-
O processo 19/08 do Tribunal Militar de Cabinda -
De Maio a Junho de 2008, o Tribunal Militar da 2ª Região, julgou o jornalista
José Fernando Lelo e seis militares das FAA`s, todos naturais de Cabinda e
ex-guerrilheiros da FLEC, alguns tidos como desertores. Os militares foram
julgados por terem (alegadamente) organizado ataques contra seus companheiros
de armas; ataques que eram imputados à FLEC.
O jornalista foi acusado,
pronunciado e condenado como autor moral. Foi considerado como o indivíduo que
mobilizou, remunerou e enquadrou os militares.
Mas logo na instrução preparatória
ficou demonstrado que nenhum dos militares conhecia aquele de quem diziam
tê-los recrutado, mobilizado e remunerado; que se teria reunido com eles e lhes
teria dado instruções e directivas. Isso não impediu que o processo contra o
jornalista continuasse, do mesmo modo que não evitou a sua condenação.
Foi absolvido em sede de recurso, em
consideração das pressões de individualidades, activistas e organizações de
defesa dos direitos humanos, dentro e fora de Angola.
O processo foi apenas um instrumento
utilizado contra o jornalista José Fernando Lelo. Até agora, desconhecem-se os
motivos que estiveram na base do referido processo contra o jornalista e dos
objectivos que visava.
III.3-
Processo 490 (ou 469)-C/08 - Alegados
autores do homicídio de Silva Helano - No dia 27 de Dezembro de 2007,
guerrilheiros da FLEC atacaram uma equipa de trabalhadores da empresa GRANT,
que realizava actividades de prospecção petrolífera na comuna de Inhuca
(município de Buco-Zau).
O ataque foi rapidamente
reivindicado pelos referidos guerrilheiros, alguns dos quais eram conhecidos
das forças de defesa e segurança, em especial o GOI (Grupo Operativo de
Inteligência Regional).
Nos dias seguintes, cinco cidadãos
da aldeia do Malela (a mais próxima do local do ataque, situada nas imediações
da sede da comuna) foram presos, juntamente com o regedor daquela área - o
regedor de Conde Grande.
Embora as diligências efectuadas
durante a instrução preparatória e a audiência de julgamento tenham objectivamente
demonstrado que aqueles infelizes não tinham nada a ver com aquela acção
militar, três deles foram condenados por sabotagem e homicídio qualificado.
E o mais grave é que o referido
homicídio não tem a mínima prova nos autos. Não existe nenhum documento
relacionado com ele, há apenas algumas referências ao mesmo: nenhum documento
de identidade do falecido, nenhum auto de exame directo relatório ou laudo de
autópsia, nenhuma arma ou munição utilizada pelos alegados autores, nada,
absolutamente nada.
III.4-
Processo 0076-B/2010 - No dia 08 de Janeiro de 2010, realizou-se o
lamentável e sinistro ataque contra a delegação togolesa de futebol.
Nesse mesmo dia, horas antes dessa
agressão macabra, foi detido um jovem e dirigente dos escuteiros católicos. Nos
dias que se seguiram ao ataque, outros activistas e membros da antiga
Associação Mpalabanda foram também detidos.
Na visita que fez aos arguidos, em
finais de Fevereiro ou princípios de Março, o Senhor Ministro sem pasta, Bento
Bembe, disse-lhes que estava mais à vontade depois de ter ouvido do Senhor
Procurador provincial que não tinham nada a ver com aquele ataque.
Igual mensagem lhes foi transmitida
pela delegação da sociedade civil, que integrou, entre outras individualidades,
o Reverendo Padre Pio.
Apesar de tudo, o Despacho de Acusação fazia evidentes,
esforçados e insidiosos esforços de relacionar os arguidos com aquele infame
ataque.
Em visita à Unidade Penitenciária do
Yabi, o Senhor Procurador Provincial recebeu em audiência os referidos
arguidos. Interpelado a propósito da colagem que se pretendia fazer entre a sua
detenção e o famigerado ataque, confirmou que os arguidos não tinham nada a ver
com o referido ataque; que a Acusação fora feita pelo seu colega, e não tinha
conhecimento dela.
Apesar de tudo, o referido Magistrado
do Ministério Público, em audiência de discussão e julgamento, não deixou de
fazer todos os esforços do seu engenho e da sua arte para tentar levar à
conclusão de que os referidos arguidos eram, na verdade, os autores morais
daquele crime hediondo.
Era mais um esforço da manipulação
da verdade e da utilização do processo para fins inconfessos, absolutamente
contrários à verdade e aos fins da justiça. E esta é também utilizada para
empobrecer, económica ou culturalmente, os Cabindas.
IV-
Confisco e/ou desapossamento de bens por
via processual
As
instituições da justiça servem-se por vezes dos processos para desapossarem dos
seus bens os arguidos. Eis alguns exemplos:
IV.1-
José Fernando Lelo - No dia 15 de Maio de 2005, previa-se a celebração da
chamada missa da unidade em Cabinda. É a missa que, em última análise, foi
proibida pelo então vigário-geral da diocese, Padre Milan Zednekev. Levaria à
intervenção da polícia - dos quais alguns agentes entraram armados na igreja e
agrediram os fiéis - e determinaria a suspensão canónica de quase todo o clero
diocesano de Cabinda.
José Fernando Lelo, nas vestes de
correspondente da Voz da América, fazia a cobertura do evento. A sua máquina de
filmar em vídeo foi apreendida pela polícia. Apesar das diligências e
intervenções feitas a diferentes níveis, ela nunca mais foi restituída.
IV.2-
André Zeferino Puati - Na madrugada do dia 08 de Janeiro de 2010, antes da detenção
de André Zeferino Puati, a sua residência foi submetida a buscas. Foi apreendido
um computador dos seus filhos, um livro e alguns documentos pessoais. Embora
não tenha sido utilizado no processo, o material apreendido não foi restituído.
IV.3-
Francisco Luemba - Depois de ter sido frustrada a tentativa de se proceder
a buscas no seu escritório no dia da sua detenção (17 de Janeiro), esta
diligência teve finalmente lugar no dia 15 de Abril de 2010, salvo erro. Foram
apreendidos vários documentos pessoais e processuais, sobretudo de interesse
pessoal, jurídico, histórico-geográfico ou cultural.
No geral, são documentos que não
tiveram relevância ou utilidade processual. Apesar de tudo, o material não foi
devolvido ao seu proprietário.
V- Deturpação ou violação de princípios jurídicos
V.1-
Processo 661-C/05 - Ivo Macaia &
Outros - Em Agosto de 2004, foram presos cinco cidadãos pela prática de
alegados crimes contra a segurança do Estado. O seu julgamento teve início a 17
de Junho de 2005. A assistência ficou surpreendida e amedrontada ao ver a juíza
de direito enquadrada por dois oficiais seniores do SINFO, como assessores
populares.
Felizmente, logo após a abertura da
sessão, o Magistrado do Ministério Público pediu a suspensão da audiência
porque devia receber uma delegação ou inspecção acabada de chegar de Luanda.
Suspensa a audiência e recolhidos à
Cadeia Civil, os arguidos, alarmados e traumatizados, chamaram de emergência o
seu defensor oficioso para lhe dizer que os assessores populares eram oficiais
do SINFO, e não devia permitir que eles continuassem naquela função.
Ao retomar-se a diligência, na
semana seguinte, a defesa exigiu a substituição daqueles energúmenos, ameaçando
deduzir suspeição contra eles. Graças a esse finca-pé da defesa, a audiência
foi suspensa uma vez mais. E só foi retomada dez meses depois, a 10 de Abril de
2006. Os intrusos foram arredados.
Seria possível que em Luanda,
Benguela ou Huíla, a despeito da separação de funções entre órgãos de instrução
e de julgamento, oficiais dos Serviços de Segurança fossem chamados a intervir
como assessores populares num tribunal num país que se considera como um Estado
Democrático e de Direito?
IV.2-
Processo 0076-B/2010 - Neste
processo, foram julgados os activistas Raul Tati, Belchior Lanso Tati e
Francisco Luemba, e um ex-oficial da Polícia Nacional, José Benjamim Fuca.
Todos eles foram detidos em Janeiro
de 2010. Antes da sua detenção, um deles foi informado, de fonte segura, que,
sob a pressão insistente do Senhor Procurador-Geral da República, o Senhor
Procurador Provincial e o Senhor Juiz de Direito, Presidente do Tribunal
Provincial, naquela manhã de 11 de Janeiro, já estavam a trabalhar no processo
da sua detenção. É como se o treinador duma equipa de futebol estivesse a
preparar o seu jogo seguinte com a ajuda preciosa do (já nomeado) árbitro do
mesmo jogo!
Posteriormente, após a sua
condenação pela alegada prática de outros
actos contra a segurança do Estado, a Defesa interpôs recurso para o
Tribunal Constitucional. Este Tribunal, alegou que não havia vantagem na
declaração da inconstitucionalidade da norma aplicada, em virtude de ter sido
revogada. Mas determinou que o Tribunal recorrido aplicasse retroactivamente a
lei revogatória, mais favorável aos arguidos (doutrina perfilhada no Acórdão
123/2010, proferido no processo de recurso ordinário de inconstitucionalidade
nº 162/10).
Em vez da aplicação retroactiva, o
Tribunal Provincial de Cabinda fez apenas... a aplicação imediata. Considerou
que a norma encontrava-se em vigor no momento da sua aplicação no processo
0076-C/2010. Que, portanto, a sua revogação (posterior) não podia afectar os
efeitos já produzidos pela norma durante a sua vigência normal. Que, assim, os
réus apenas ficavam livres da pena ainda por cumprir, ficando salvaguardada a
parte cumprida sob o império da lei antiga.
São estes alguns casos peculiares do
funcionamento das instituições de justiça em Cabinda.
Se não forem escondidos ou
destruídos, os processos podem ser consultados, para a confirmação dos factos
aqui referidos.
Muito obrigado pelo convite que me
foi formulado; obrigado ainda pela paciência e indulgência com que me
suportaram.
Francisco Luemba
Cabinda, Novembro de
2014.
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