07/09/2009

A RAZÃO DOS MUDOS

Encaminhado pelo nosso amigo Carlos Figueiredo, recebemos o texto a baixo que pelo seu conteúdo e contexto, nos impõe divulgá-lo. Divaldo Martins foi porta-voz do Comando-geral da Polícia de Angola.
Na semana passada publiquei um artigo em que, entre outras coisas, falei do que pensava em relação ao tempo que vivemos, um tempo em que as pessoas não falam, porque têm medo de pensar, e onde os que falam parecem subverter o sistema, o que quer que isso seja. Disse também que, por isso, criamos uma sociedade dos Prós e dos Contra, onde os Prós preferem viver calados de boca aberta, e os Contra são os que aceitam pensar e por isso cometem a «imprudência» de falar.

Para além disso, disse que a minha geração, ao contrário do que parece, não está contente com a sua forma de existência, e que os da minha geração vivem a reclamar calados de boca aberta, em murmúrios e em silêncios, simplesmente porque têm medo, e bebem para silenciar o pensamento, como o poeta que fumava ópio para esquecer. E disse mais coisas. Disse que é tempo de esgrimirmos ideias e valorizarmos a excelência, tempo de aprendermos a ser livres e respeitar a liberdade, para permitir que cada um de nós consiga libertar a excelência escondida no silêncio do seu medo.

Por lapso, este artigo foi publicado com uma foto em que estou uniformizado. Naturalmente, como se compreenderá, aquelas opiniões não vinculam a Polícia, como instituição, nem a mim enquanto oficial da corporação, em relação a qual mantenho total respeito e equidistância nos comentários que produzo, por uma questão de ética e disciplina. Aquelas opiniões vinculam tão-somente o cidadão que pré-existe e que se mantém para além de qualquer categoria funcional, esta sim, passageira. Por isso, aproveito a oportunidade para me desculpar dos enganos que este lapso, do qual lamento bastante, possa ter causado, e em relação ao qual já solicitei ao jornal que fizesse a devida ressalva.

Entretanto, por causa daquele artigo recebi um telefonema dos meus pais. O meu pai é das pessoas mais calmas que conheço, porque vive aceitando as coisas da vida como uma inevitabilidade, e por isso se conforma e não faz ondas, tudo lhe parece normal e vive bem assim. Mas naquele dia, enquanto lhe explicava que não tinha dito nada de mal, ele perguntou-me se estava a tentar levar um tiro da cabeça, e antes que eu respondesse que não, passou o telefone à minha mãe, a pessoa mais stressada do mundo. Como eu esperava, a minha mãe não falou, gritou e me deixou sem perceber se era um ataque de histeria ou o início de uma trombose o que lhe fazia tremer a voz daquela maneira.

Porque cometi a «imprudência» de falar, o meu telefone não parou de tocar, a minha caixa de correio inundou de mensagens. Entre elogios e comentários, um amigo, formado em relações internacionais, funcionário do Ministério da Saúde, depois de me aconselhar um vivo «cuidado», perguntou-me se queria ser um revolucionário. «Se temos medo não é porque somos burros, tu sabes porquê», disse ele. Um outro contemporâneo, ex-colega da licenciatura, acusou-me de ter sido «imprudente» e disse que leu o artigo com preocupação, principalmente «por causa da nossa relação de amizade». Uma amiga disse-me que o chefe perguntou-lhe se eu tinha algum «padrinho» na cozinha, porque «nesse país não é possível alguém dizer o que pensa, sem ter medo». Eu respondi que o meu padrinho é Deus, e que o próprio medo é que me dá coragem.

No meio de tudo isso, entre várias e longas discussões, entre críticas e argumentos, algumas pessoas pediram-me simplesmente para deixar de «falar», o que na verdade significa deixar de pensar, porque estou a ser conotado como «alguém do contra» que pretende colocar as pessoas contra. Fiquei confuso, quase gritei indignado, como a minha mãe. Sou contra quem, perguntei. Estou a colocar as pessoas contra o quê, Deus do céu.

«Contra o sistema», disseram todos, com a reverência de quem fala de um ser superior.

«Mas o que é o sistema, afinal? Quais são, quem são as pessoas que fazem parte desse sistema? Contra quem me estou a colocar? Contra quem estou a colocar as pessoas?» Alguns argumentaram, inventaram teorias, mas quando perguntei, nenhum conseguiu identificar e explicar o que é afinal o sistema e quem são as pessoas que fazem parte dele. E não conseguiram identificar porque, na verdade, o sistema não existe. O sistema somos todos nós, o sistema é o nosso próprio medo. O sistema é o kambumbú da nossa infância, é o fantasma que nos faz temer as ideias, o monstro invisível que nos faz ter medo de pensar para não corrermos o risco de falar.
Todos com quem falei concordaram que era verdade, que vivemos num tempo de surdos e mudos, de jogos de cintura, de gritos silenciosos, mas argumentaram para me criticar, que «há verdades que não podem ser ditas». «Escreve sobre outras coisas, coisas boas, essas não», disse-me a minha mãe, já mais calma, no fim da conversa. Fiquei sem saber o que dizer. Se não posso falar sobre verdades, pra quê escrever, afinal? Para dizer o que não penso, ou falar sem pensar? O melhor é me calar.

Depois de algum tempo, recolhi-me. Deixei de atender o telefone e de responder as mensagens. Nos primeiros instantes desse tempo só pra mim, confesso que fiquei preocupado, cheguei mesmo a sentir medo por causa do que me disseram. Senti muito medo. Mas, por causa disso mesmo, e contra o que todos me aconselharam, decidi escrever de novo, com a forte convicção de que de uma discussão podem surgir desentendimentos, podem ficar pessoas prejudicadas, mas no final acabará por nascer a luz. Neste ou noutro tempo qualquer, mas aqui neste lugar.

Naturalmente que em nenhuma circunstância, ao escrever o que escrevi, pretendi causar problemas a quem quer que fosse, principalmente aos que me são próximos, à minha família, aos meus amigos; em nenhuma circunstância pensei em colocar alguém contra quem quer que fosse, ou estar contra quem quer que fosse, muito menos contra um fantasma que ninguém consegue identificar sem ser pelo nome de «sistema».

Não temos que ser, necessariamente, contra ou a favor quando decidimos fazer alguma coisa, ou quando criticamos o que nos parece mal. Eu não sou contra nada, nem contra ninguém. E se sou a favor, sou a favor da cidadania responsável e defensor da excelência. E acredito que estas só podem existir onde houver liberdade, porque entendo que a liberdade é uma condição imprescindível da condição humana e, por isso, não é possível renunciarmos a liberdade e ainda assim continuarmos vivos, pelo menos como homens. Foi por isso que se aboliu a escravatura, foi por isso que se combateram os colonos. Pelo resgate da nossa condição de humanos. E julgo que ninguém, em qualquer sociedade que se pretenda constituir num espaço de liberdade e democracia, pode estar contra isso.

O que eu pretendi foi precisamente chamar atenção sobre esse fantasma que paira em cada gesto, como uma sombra da história, em cada silêncio, como um grito do passado, porque, por mais que eu me esforce, por mais que me chamem de ingénuo, irresponsável e imaturo, eu recuso-me a acreditar que exista uma intenção deliberada de se criar nas pessoas o medo que ouvi na voz dos meus pais e dos meus amigos. Não acredito que haja a intenção de se construir uma sociedade que acredita em monstros sem rosto, como crianças assustadas com pesadelos de infância, os kambumbús que vivem nas sombras.

Eu acredito que nós, cidadãos, todos e cada um, é que construímos esse fantasma no nosso quotidiano, moldamo-lo com o nosso silêncio sobre verdades que não podem ser ditas, requintamo-lo com a omissão dos nossos gestos que desistiram da excelência, damos-lhe força quando abdicámos de ser competentes e alimentamo-lo todos os dias quando fazemos sorrisos fingidos, enquanto fazemos jogos de cintura para fintar o país. Enganando o país, a fingir que somos dos Prós, simplesmente porque não falamos, não fazemos e só dançamos, enganamos a nós mesmos.

Também não sou revolucionário, nem pretendo ser. Como disse um dos meus amigos, a galeria dos heróis já está cheia. Quem me conhece sabe que sou contra qualquer tipo de violência. A única revolução em que acredito é a da possibilidade de superação das pessoas, é a da capacidade de mudar o mundo, mudando pessoas, da força da vontade de fazer melhor todos os dias, da certeza de que o bem realizado por cada um torna o todo melhor, agora e amanhã, para todos e para cada um de nós.

Portanto, para mim não existe sistema nenhum! Para mim não existe sistema, para além do fantasma alimentado pelas nossas omissões e pela renúncia da nossa cidadania, provocadas pelo próprio medo, que nos faz acreditar que o melhor é mesmo não falar, porque falando corremos o risco de levar um tiro na cabeça ou perder o emprego, ou o carro do serviço; ou, se ainda assim quisermos falar, não dizer verdades, ou seja, falar só de «coisas boas», como sugeriu o medo da minha mãe.

Não consigo deixar de ficar chocado com isso, mas não consigo ficar chocado e não falar sobre isso. Talvez seja esse o meu mal. Por isso, talvez um dia pare de escrever, talvez um dia pare de falar, mas não agora. Talvez um dia, queira Deus que sim, fale com os meus netos sobre esse tempo, com nostalgia, mas sem medo, contando, fazendo-os rir, sobre os gritos que um dia a bisavô deles me fez ao telefone, porque cometi a imprudência de dizer o que pensava. Espero que nesse dia, naquele tempo de amanhã, os meus netos não acreditem em mim, e pensem que as minhas palavras são delírios de um velho louco que não se cansa de falar.

Divaldo Martins

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