26/06/2015

NOVO JORNAL – GRANDE ENTREVISTA COM JOSÉ PATROCÍNIO

“Antes era um orgulho ser da polícia, hoje é uma vergonha”
É uma das vozes mais inconformadas e críticas do estado dos direitos humanos no país, mas mais do que isso, assume-se como um defensor confesso do país que o viu nascer. No Lobito, onde nasceu em 1962 e reside, e de onde respondeu ao nosso questionário via mail, José Patrocínio, coordenador da OMUNGA, associação angolana promotora de acções em prol e defesa dos direitos humanos e culturais, não poupou nas críticas à Polícia Nacional, ao Ministério Público e à forma como se conduz o processo democrático em Angola. Reagindo à detenção dos jovens activistas acusados de pretenderem “destituir o governo” e “perpetrar um golpe de Estado”, o activista lamenta o facto e considera que “está cada vez mais claro que, infelizmente, esta instituição que denominamos por polícia, se torna mais cobarde, bruta, arrogante e imbecil”.
Luanda e Benguela, e agora nos últimos meses alguns casos estenderam-se também para as províncias do Bié e Huambo, têm sido palco de alguma convulsão no que ao activismo cívico diz respeito. Esta subida de tom das autoridades em relação aos direitos humanos é sinónimo de que a democracia que se estabelece no país ainda manca?
Primeiro teríamos que reflectir sobre o conceito de democracia e se isso, esse conceito, se aplicaria a Angola. Conforme entendo, democracia é antes um processo do que é um Estado em si, perpétuo no tempo. Ao falarmos de democratização, todas as sociedades vivem esse processo, já que é humano e existencial. O que acontece é que em todas as sociedades, sendo um processo, conflitua-se com forças a favor e contra. Assim são os processos. E cada processo, sendo cada processo dentro desse enorme processo, tem mais ou menos forças pró ou contra. Como um rio procurando caminhos.
Não querendo filosofar, obviamente que o nosso processo (localmente entendível) depara-se com inúmeras e poderosas forças contrárias. Aliás, entendíveis. Não aceitáveis! As forças contrárias são fortes já que detêm neste momento os diferentes poderes. O poder do executivo, decidindo e impondo as medidas de gestão. O poder legislativo, brincando com o fabrico de leis e de determinação de políticas. O poder económico/financeiro, num esquema claro de promiscuidade entre o político e os interesses pessoais e privados. O poder militar e de repressão, com um também abusivo uso da força como garante da protecção de toda esta palhaçada e, pior que tudo, o poder judiciário. O uso abusivo das instituições do judiciário na defesa e manutenção do sistema, como ferramenta de linha da frente na oposição ao processo de democratização.
O que é que na vossa opinião tem legitimado essa subida de tom por parte das autoridades?
São as contradições internas que provocam mais oposições, como a situação de pobreza e de empobrecimento acelerado da maioria da população, confrontada com o enriquecimento ao mesmo ritmo da oligarquia no poder ou seus satélites, e enquanto falta de resposta, a falta de criatividade dos que dominam a situação em procurar outros caminhos como o da negociação e o da participação. Neste contexto, obviamente que fica claro que as forças opostas dentro do processo de democratização serão mais violentas que nem um pedregulho no percurso dum rio. Só que neste caso, no nosso, ele não só é um obstáculo ao curso mas é um repressor ao mesmo tempo.
Não lhe parece que a acusação de que estão a ser alvo os jovens – de “rebelião e atentado ao Presidente da República” – é de algum modo desproporcional em relação aos meios citados até agora como prova do alegado crime cometido pelos jovens que teriam sido apanhados em flagrante delito?
Bom, eu até me rio deste facto, de ser tão flagrantemente patético. Mas ao mesmo tempo animo-me pelo que anteriormente argumentei, o sistema ter desde já perdido a sua capacidade criativa e sentir-se em flagrante pesadelo que ele próprio construiu.
Não acha displicente da parte do Serviço de Investigação Criminal (SIC) julgar que com fascículos e meios informáticos se promovem “actos tendentes a alterar a ordem e a estabilidade públicas”, como afirmou o comunicado dos SIC?
Bom, na realidade poderíamos entender que o uso desses meios poderiam obviamente provocar ou despoletar algum acto que tendesse à alteração da ordem e da estabilidade públicas. Mas devemos entender duas questões: Primeiro, isto encaixa-se neste caso? Segundo, não será discutível a necessidade ou não de se alterar a ordem e a dita estabilidade públicas num contexto como o nosso? Se calhar o Caetano e a PIDE diriam o mesmo que agora nos estão a dizer. Mas afinal a luta de libertação e o golpe do 25 de Abril não foram "actos tendentes a alterar a ordem e a estabilidade públicas" de então e do então sistema e regime? Foi isso um crime ou uma necessidade política concreta? Se me disserem que o regime está aberto à negociação e à participação, então estou completamente de acordo que nada disso é necessário. Mas num regime como o nosso, obviamente que sou também apologista que só o chocalhar das estruturas que o suportam podem conduzir o processo de democratização de forma fluida e integral.
A polícia tornou-se numa instituição cobarde, bruta, arrogante e imbecil
Por exemplo, aquando das buscas e apreensão em casa de Luaty Beirão, pelo que se soube através da imprensa, foi pedido pela família o direito de solicitação de um advogado, entretanto, ignorado pelos agentes da polícia. Há claramente uma violação de um direito reservado a qualquer cidadão...Quem devia pôr cobro a isso?
Quem deveria pôr cobro a isto seria o próprio violador se ele cumprisse a sua missão e a sua real responsabilidade. Cabe à procuradoria velar pelo respeito da lei e pela protecção dos direitos dos cidadãos, dentro da protecção do próprio Estado. Quando falamos neste papel da Procuradoria de protecção dos interesses do Estado, subentendemos que um dos seus componentes deste mesmo Estado são os seus cidadãos. São eles que num território definem as regras de relacionamento, definem os seus símbolos e constituem as instituições que gerem e os representam. Então a procuradoria ao ter a obrigatoriedade de proteger os interesses do Estado é obrigada a proteger os interesses dos cidadãos, e não apenas de uns que se escudam nas instituições como a da Presidência da República
O problema está nas “ordens superiores” ou nalguma insuficiência que as autoridades, principalmente policiais, apresentam sobre o papel das instituições da sociedade civil?
Está cada vez mais claro que, infelizmente, esta instituição que denominamos por polícia, se torna mais cobarde, bruta, arrogante e imbecil. Isto em todo o mundo. Ela procede de igual forma, actualmente, quer em países que possamos considerar mais de esquerda como nos de direita, nos denominados democráticos como nos ditatoriais. Aqui é um ponto importante de reflexão. Como instrumentalizámos e brutalizámos este espaço. Como poderemos reconquistar a sua própria lógica. Antes era um orgulho ser da polícia, dos bombeiros ou do exército. Eram exemplos de coragem, de protecção. Hoje é uma vergonha. Ao se ter brutalizado esta instituição retirou-se dela o racional e, tal que nem uma fera, ataca à ordem do seu adestrador.
O advogado Arão Tempo foi recentemente impedido de se deslocar a Benguela por ordem do sub-procurador da República em Cabinda. Uma situação que não envolve directamente a polícia mas sim o Ministério Público.  Parece haver aqui um contra senso...É um outro mau exemplo?
Na realidade Arão Tempo foi impedido de viajar para Benguela a nosso convite. É apenas mais um exemplo de como o poder judiciário se vai cada vez mais auto-desmascarando-se como uma ferramenta de manutenção do sistema em que cidadãos, usurpando-se do poder, o utilizam abusivamente para salvaguardar os seus apetites e interesses pessoais.
A Omunga tem feito denúncias de várias situações de alegada arbitrariedade. Tratando-se de um assunto que envolve direitos fundamentais dos cidadãos e de interesse do próprio Estado, como têm reagido a isso as entidades governamentais em Benguela?
Tal como as relações entre pessoas, sempre temos pontos de convergência e pontos de divergência. Pontos de aproximação e pontos de afastamento. Infelizmente, o livre arbítrio a que se permite aos cidadãos que ocupam cargos de poder, leva muitas vezes, para além das relações que poderiam ser correntes, a ambientes de conflituosidade. O mesmo acontece aqui em Benguela. Por exemplo, o ex-governador provincial, Armando da Cruz Neto, conforme foi (em limitada medida) um exemplo no assunto de direito à habitação como a construção, por exemplo, do único bairro social em Angola para moradores de rua, ao mesmo tempo andou a distribuir terras sem quaisquer critérios legais. Assim temos um enorme conflito no bairro do Golfe, na zona alta do Lobito em que quase uma centena de famílias se conflitua com a cidadã Nádia Furtado, filha da então procuradora-geral adjunta e parente do ex-chefe do Estado Maior General das FAA, já que esta se considera titular da área por ter recebido os tais terrenos do então governador.
O José Patrocínio vem-se queixando de ser vítima de ameaças e inclusive de atentados...A polícia ou o Ministério Público já se pronunciaram alguma vez sobre o facto?
Eu não me queixo de ser vítima de ameaças ou atentados. Eu digo que fui vítima de assaltos estranhos e de que tivemos acesso à informação de que poderia ter a minha vida em risco. Na realidade, em relação a este assunto, todos os representantes das instituições que contactámos, mostraram-se preocupados e prometeram tomar as devidas medidas de investigação e de protecção. No entanto não temos qualquer informação que demonstre que tais medidas tenham sido consideradas e aplicadas.
“É hora de dizer ‘sai daí’”
Fala-se numa polícia que não é republicana. Não há aqui, por um lado, uma dificuldade em abordar estes problemas frontalmente com a polícia?
Não entendo muito bem o que é isso de polícia republicana. A ideia de se necessitar de polícia e de desviarmos os nossos próprios recursos, que não são nada poucos, para a mesma, apenas se liga ao conceito de protecção do indivíduo, do colectivo, do seu território (onde e conjuntamente com o qual se forma o Estado) e das instituições criadas e imaginadas por estes indivíduos e por este colectivo. Só que é tipo o velho ditado: "O feitiço virou-se contra o feiticeiro". Esta instituição forjou-se não na defesa dos direitos e interesses maiores dos indivíduos e da colectividade enquanto um todo, mas num instrumento de protecção de apenas dos interesses de uns poucos, mesmo sendo os agentes, os que constituem esta corporação, vítimas deste mesmo sistema.
Não acha que é chegada a hora das organizações da sociedade civil adoptarem uma outra postura junto dos órgãos da polícia, incluindo-a, por exemplo, nas vossas prioridades nas acções de sensibilização, de modo que ela seja a primeira a perceber os limites de actuação no âmbito dos direitos humanos?
É hora de mudanças muito mais profundas do que este simples processo de abstracta consciencialização e de sensibilização. É hora de construirmos uma Angola de todos levando aos tribunais quem esteja contra a corrente. “É hora de dizer basta e chega”. É hora de dizer "sai daí!"

Se Luanda se queixa, como é agora prova, do exercício das liberdades no âmbito dos direitos humanos, como respira Benguela nesse sentido?
Infelizmente respira a mesma poluição de Luanda e do resto do país. Com mais ou menos laivos de aparente pacatez diária. Para mim, sinceramente, só existe uma solução, para começarmos a usar positivamente as nossas energias neste processo. É o nosso concidadão José Eduardo dos Santos abster-se do poder e deixar de nos impedir que todos nós sejamos parte e produto do processo de democratização do país, que significa obviamente em processo de reencontro e de pacificação real.

Nok Nogueira

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