“Antes era um orgulho ser da polícia, hoje
é uma vergonha”
É uma das vozes mais inconformadas e
críticas do estado dos direitos humanos no país, mas mais do que isso,
assume-se como um defensor confesso do país que o viu nascer. No Lobito, onde
nasceu em 1962 e reside, e de onde respondeu ao nosso questionário via mail,
José Patrocínio, coordenador da OMUNGA, associação angolana promotora de acções
em prol e defesa dos direitos humanos e culturais, não poupou nas críticas à
Polícia Nacional, ao Ministério Público e à forma como se conduz o processo
democrático em Angola. Reagindo à detenção dos jovens activistas acusados de
pretenderem “destituir o governo” e “perpetrar um golpe de Estado”, o activista
lamenta o facto e considera que “está cada vez mais claro que, infelizmente,
esta instituição que denominamos por polícia, se torna mais cobarde, bruta,
arrogante e imbecil”.
Luanda e Benguela, e agora nos últimos
meses alguns casos estenderam-se também para as províncias do Bié e Huambo, têm
sido palco de alguma convulsão no que ao activismo cívico diz respeito. Esta
subida de tom das autoridades em relação aos direitos humanos é sinónimo de que
a democracia que se estabelece no país ainda manca?
Primeiro teríamos que reflectir sobre o
conceito de democracia e se isso, esse conceito, se aplicaria a Angola.
Conforme entendo, democracia é antes um processo do que é um Estado em si,
perpétuo no tempo. Ao falarmos de democratização, todas as sociedades vivem
esse processo, já que é humano e existencial. O que acontece é que em todas as
sociedades, sendo um processo, conflitua-se com forças a favor e contra. Assim
são os processos. E cada processo, sendo cada processo dentro desse enorme
processo, tem mais ou menos forças pró ou contra. Como um rio procurando
caminhos.
Não querendo filosofar, obviamente que o
nosso processo (localmente entendível) depara-se com inúmeras e poderosas
forças contrárias. Aliás, entendíveis. Não aceitáveis! As forças contrárias são
fortes já que detêm neste momento os diferentes poderes. O poder do executivo,
decidindo e impondo as medidas de gestão. O poder legislativo, brincando com o
fabrico de leis e de determinação de políticas. O poder económico/financeiro,
num esquema claro de promiscuidade entre o político e os interesses pessoais e
privados. O poder militar e de repressão, com um também abusivo uso da força
como garante da protecção de toda esta palhaçada e, pior que tudo, o poder
judiciário. O uso abusivo das instituições do judiciário na defesa e manutenção
do sistema, como ferramenta de linha da frente na oposição ao processo de democratização.
O que é que na vossa opinião tem legitimado
essa subida de tom por parte das autoridades?
São as contradições internas que provocam
mais oposições, como a situação de pobreza e de empobrecimento acelerado da
maioria da população, confrontada com o enriquecimento ao mesmo ritmo da
oligarquia no poder ou seus satélites, e enquanto falta de resposta, a falta de
criatividade dos que dominam a situação em procurar outros caminhos como o da
negociação e o da participação. Neste contexto, obviamente que fica claro que
as forças opostas dentro do processo de democratização serão mais violentas que
nem um pedregulho no percurso dum rio. Só que neste caso, no nosso, ele não só
é um obstáculo ao curso mas é um repressor ao mesmo tempo.
Não lhe parece que a acusação de que estão
a ser alvo os jovens – de “rebelião e atentado ao Presidente da República” – é
de algum modo desproporcional em relação aos meios citados até agora como prova
do alegado crime cometido pelos jovens que teriam sido apanhados em flagrante
delito?
Bom, eu até me rio deste facto, de ser tão
flagrantemente patético. Mas ao mesmo tempo animo-me pelo que anteriormente
argumentei, o sistema ter desde já perdido a sua capacidade criativa e
sentir-se em flagrante pesadelo que ele próprio construiu.
Não acha displicente da parte do Serviço de
Investigação Criminal (SIC) julgar que com fascículos e meios informáticos se
promovem “actos tendentes a alterar a ordem e a estabilidade públicas”, como
afirmou o comunicado dos SIC?
Bom, na realidade poderíamos entender que o
uso desses meios poderiam obviamente provocar ou despoletar algum acto que
tendesse à alteração da ordem e da estabilidade públicas. Mas devemos entender
duas questões: Primeiro, isto encaixa-se neste caso? Segundo, não será
discutível a necessidade ou não de se alterar a ordem e a dita estabilidade
públicas num contexto como o nosso? Se calhar o Caetano e a PIDE diriam o mesmo
que agora nos estão a dizer. Mas afinal a luta de libertação e o golpe do 25 de
Abril não foram "actos tendentes a alterar a ordem e a estabilidade
públicas" de então e do então sistema e regime? Foi isso um crime ou uma
necessidade política concreta? Se me disserem que o regime está aberto à
negociação e à participação, então estou completamente de acordo que nada disso
é necessário. Mas num regime como o nosso, obviamente que sou também apologista
que só o chocalhar das estruturas que o suportam podem conduzir o processo de
democratização de forma fluida e integral.
A polícia tornou-se numa instituição
cobarde, bruta, arrogante e imbecil
Por exemplo, aquando das buscas e apreensão
em casa de Luaty Beirão, pelo que se soube através da imprensa, foi pedido pela
família o direito de solicitação de um advogado, entretanto, ignorado pelos
agentes da polícia. Há claramente uma violação de um direito reservado a
qualquer cidadão...Quem devia pôr cobro a isso?
Quem deveria pôr cobro a isto seria o
próprio violador se ele cumprisse a sua missão e a sua real responsabilidade.
Cabe à procuradoria velar pelo respeito da lei e pela protecção dos direitos
dos cidadãos, dentro da protecção do próprio Estado. Quando falamos neste papel
da Procuradoria de protecção dos interesses do Estado, subentendemos que um dos
seus componentes deste mesmo Estado são os seus cidadãos. São eles que num
território definem as regras de relacionamento, definem os seus símbolos e
constituem as instituições que gerem e os representam. Então a procuradoria ao
ter a obrigatoriedade de proteger os interesses do Estado é obrigada a proteger
os interesses dos cidadãos, e não apenas de uns que se escudam nas instituições
como a da Presidência da República
O problema está nas “ordens superiores” ou
nalguma insuficiência que as autoridades, principalmente policiais, apresentam
sobre o papel das instituições da sociedade civil?
Está cada vez mais claro que, infelizmente,
esta instituição que denominamos por polícia, se torna mais cobarde, bruta,
arrogante e imbecil. Isto em todo o mundo. Ela procede de igual forma,
actualmente, quer em países que possamos considerar mais de esquerda como nos
de direita, nos denominados democráticos como nos ditatoriais. Aqui é um ponto
importante de reflexão. Como instrumentalizámos e brutalizámos este espaço.
Como poderemos reconquistar a sua própria lógica. Antes era um orgulho ser da
polícia, dos bombeiros ou do exército. Eram exemplos de coragem, de protecção.
Hoje é uma vergonha. Ao se ter brutalizado esta instituição retirou-se dela o
racional e, tal que nem uma fera, ataca à ordem do seu adestrador.
O advogado Arão Tempo foi recentemente
impedido de se deslocar a Benguela por ordem do sub-procurador da República em
Cabinda. Uma situação que não envolve directamente a polícia mas sim o
Ministério Público. Parece haver aqui um contra senso...É um outro mau
exemplo?
Na realidade Arão Tempo foi impedido de
viajar para Benguela a nosso convite. É apenas mais um exemplo de como o poder
judiciário se vai cada vez mais auto-desmascarando-se como uma ferramenta de
manutenção do sistema em que cidadãos, usurpando-se do poder, o utilizam
abusivamente para salvaguardar os seus apetites e interesses pessoais.
A Omunga tem feito denúncias de várias
situações de alegada arbitrariedade. Tratando-se de um assunto que envolve
direitos fundamentais dos cidadãos e de interesse do próprio Estado, como têm
reagido a isso as entidades governamentais em Benguela?
Tal como as relações entre pessoas, sempre
temos pontos de convergência e pontos de divergência. Pontos de aproximação e
pontos de afastamento. Infelizmente, o livre arbítrio a que se permite aos
cidadãos que ocupam cargos de poder, leva muitas vezes, para além das relações
que poderiam ser correntes, a ambientes de conflituosidade. O mesmo acontece
aqui em Benguela. Por exemplo, o ex-governador provincial, Armando da Cruz
Neto, conforme foi (em limitada medida) um exemplo no assunto de direito à
habitação como a construção, por exemplo, do único bairro social em Angola para
moradores de rua, ao mesmo tempo andou a distribuir terras sem quaisquer
critérios legais. Assim temos um enorme conflito no bairro do Golfe, na zona
alta do Lobito em que quase uma centena de famílias se conflitua com a cidadã
Nádia Furtado, filha da então procuradora-geral adjunta e parente do ex-chefe
do Estado Maior General das FAA, já que esta se considera titular da área por
ter recebido os tais terrenos do então governador.
O José Patrocínio vem-se queixando de ser
vítima de ameaças e inclusive de atentados...A polícia ou o Ministério Público
já se pronunciaram alguma vez sobre o facto?
Eu não me queixo de ser vítima de ameaças
ou atentados. Eu digo que fui vítima de assaltos estranhos e de que tivemos
acesso à informação de que poderia ter a minha vida em risco. Na realidade, em
relação a este assunto, todos os representantes das instituições que
contactámos, mostraram-se preocupados e prometeram tomar as devidas medidas de
investigação e de protecção. No entanto não temos qualquer informação que
demonstre que tais medidas tenham sido consideradas e aplicadas.
“É hora de dizer ‘sai daí’”
Fala-se numa polícia que não é republicana.
Não há aqui, por um lado, uma dificuldade em abordar estes problemas
frontalmente com a polícia?
Não entendo muito bem o que é isso de
polícia republicana. A ideia de se necessitar de polícia e de desviarmos os nossos
próprios recursos, que não são nada poucos, para a mesma, apenas se liga ao
conceito de protecção do indivíduo, do colectivo, do seu território (onde e
conjuntamente com o qual se forma o Estado) e das instituições criadas e
imaginadas por estes indivíduos e por este colectivo. Só que é tipo o velho
ditado: "O feitiço virou-se contra o feiticeiro". Esta instituição
forjou-se não na defesa dos direitos e interesses maiores dos indivíduos e da
colectividade enquanto um todo, mas num instrumento de protecção de apenas dos
interesses de uns poucos, mesmo sendo os agentes, os que constituem esta
corporação, vítimas deste mesmo sistema.
Não acha que é chegada a hora das
organizações da sociedade civil adoptarem uma outra postura junto dos órgãos da
polícia, incluindo-a, por exemplo, nas vossas prioridades nas acções de
sensibilização, de modo que ela seja a primeira a perceber os limites de
actuação no âmbito dos direitos humanos?
É hora de mudanças muito mais profundas do
que este simples processo de abstracta consciencialização e de sensibilização.
É hora de construirmos uma Angola de todos levando aos tribunais quem esteja
contra a corrente. “É hora de dizer basta e chega”. É hora de dizer "sai
daí!"
Se Luanda se queixa, como é agora prova, do
exercício das liberdades no âmbito dos direitos humanos, como respira Benguela
nesse sentido?
Infelizmente respira a mesma poluição de
Luanda e do resto do país. Com mais ou menos laivos de aparente pacatez diária.
Para mim, sinceramente, só existe uma solução, para começarmos a usar
positivamente as nossas energias neste processo. É o nosso concidadão José
Eduardo dos Santos abster-se do poder e deixar de nos impedir que todos nós
sejamos parte e produto do processo de democratização do país, que significa
obviamente em processo de reencontro e de pacificação real.
Nok
Nogueira
Sem comentários:
Enviar um comentário