Libertar o Padre Tati - compromisso com a ONU e com África
Acabo de chegar de participar de uma intensa abordagem, na África do Sul e na Gâmbia, sobre a pandemia do SIDA e os direitos humanos. Durante este tempo todo, em pleno Ano Sacerdotal, quando me deitasse, lembrava-me dentre outras pessoas, do Servo de Deus, o Padre Tati Raul. Perguntava-me a mim mesmo, porque foi ele privado de liberdade? Não têm consciência aqueles que o mantêm cativo, que encarceraram um homem de Deus cujas mãos estão ungidas com óleo do Santo Crisma? A única culpa do Padre Tati Raul é almejar a liberdade, a liberdade de consciência, a auto-estima da memória, da colectividade enquanto espaço de auto-afirmação e celebração da identidade especificamente Cabinda no quadro da Angolanidade, parafraseando o meu amigo, o Padre Jorge Casimiro Congo. Logo de manhã, ia às notícias para saber se ia ser liberto: nada! Para acelerar o dia da liberdade, apresentamos na 47ª Sessão da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, uma Declaração onde urgíamos o Governo angolano a libertar já o Padre Tati Raul e companheiros.
O Padre Tati Raul está preso porque ele é ícone da memória colectiva, celebra-a enquanto sacerdote e vive-a como o ar que respira! Nos tempos que correm, cresce o culto da memória. A memória é identidade, afirmação, é no fundo a pessoa humana enquanto santuário divino, consciente da sua sacralidade e especificidade individual e colectiva, na história! A memória inquieta, interpela e incomoda. Por isso, ela assusta e é inimiga de quem tem poder autocrático. É perseguida para ser expurgada da consciência. No entanto, ela é tão subtil como a alma: quanto mais perseguida, mais nos acompanha como nossa própria sombra ao longo da história. Ela tem os seus detractores em todo o lado. Também se afirma cada vez mais que se quer extinta. No dizer de Roberto Massei, a modernidade transformou o homem num ser sem memória. Essa modernidade, para nós se transformou cópias de modelos, de paradigmas cada vez mais violentos, onde se entrecruzam os interesses globais com seus apetites vorazes, e a nossa mesquinhez de dependentes de memórias alheias. Diante destas confluências, simplesmente muitos sucumbem e vendem-se a preço de bagatela! Mas lá vem a memória ricochetear a nossa mísera consciência. Quem diria que a guerra civil espanhola, depois de quase 80 anos, sua memória iria ressuscitar como fantasma mal exorcizado? A memória trouxe de volta o espectro dos cerca de 113000 cadáveres enterrados pela Espanha e não se olvidou de nenhum deles! Estão enterrados em descampados e valas comuns, mas a memória deles reclama justiça. Daí, a intrínseca ligação entre memória, verdade e justiça.
O Estado angolano continua prisioneiro do passado: ao querer ver o Padre Raul Tati a elanguescer na cadeia, quer passar uma mensagem: que seja exterminada sua descendência e seja apagado o seu nome de geração em geração (Salmo 109, 13). Assim rezam os ímpios no seu coração, levantando acusações infundadas. Quer-se igualmente passar uma mensagem a todos os cultores da memória: quem tentar ser igual a si mesmo, vai ter o mesmo fim! Todos os discursos de diabolização, exclusão, indiferença, cerceamento das liberdades têm a mesma origem: medo de conviver com o outro, de ser igual, de o respeitar. Se eu respeitar o outro, seremos iguais. E joga a favor dessa dinâmica opressiva, a longa aprendizagem colonial e pós-colonial de emprego de violência como argumento para fortalecer o Estado. Os discursos acrimoniosos de muitos representantes de Estados africanos eram de baixa jaez, denotando miopia e ao mesmo tempo, desespero de agarrar o poder a todo custo, acusando os defensores de direitos humanos de serem uns papagaios e mentirosos! Pontificaram nisso, entre outros, a Nigéria, os Camarões, a Tunísia, a Etiópia. E a lista não é exaustiva!
Pode dizer-se o que se quiser do padre Tati. Mas eu dou o meu singelo testemunho do Padre Raul Tati. Foi nosso mais velho e contemporâneo no Seminário Maior do Sagrado Coração de Jesus em Luanda. Foi colega de carteira de D.Manuel Imbamba, Bispo do Dundo e do Padre Apolónio Graciano, entre outros. Já vi alguns dos seus colegas a se destemperarem por alguma das nossas traquinices de filósofos novatos, desafiando-os e cutucando-os com a vara curta do nosso arguto filosofar! Essa dinâmica entre teólogos meditabundos e filósofos inquisidores, sempre existiu e sempre existirá! Era uma forja de valores e um espaço de verdadeira construção de coexistência democrática. Foram os tempos mais belos da minha vida. Nunca vi o Teólogo Raul Tati (nome que nós dávamos aos estudantes de Teologia) a irritar-se. Certa vez, ele vinha do fundo do corredor, eu tendo-o confundido com o Nery (Aurélio), bati-lhe no peito! Refeito do erro, quis ajoelhar-me e pedir perdão, mas ele, não só não me repreendeu pela traquinice de mau gosto, como não permitiu que me pusesse de joelhos. Aliás, o que distinguia um grande número dos colegas de Cabinda, muitos deles vindos de escolas filosóficas e humanísticas dos dois Congos, é a aberta cosmovisão que tinham da vida, a capacidade de buscarem soluções alternativas para problemas que achávamos difíceis e insolúveis, e acima de tudo, a dignidade de pessoas e de africanos. Colegas como o Desidério Maiema, Nionje Kapita, Abel Lilwala, António Mabiala, para citar poucos, dinamizaram o Seminário, instilando o desiderato para um tipo de sacerdote sábio, africano na sua essência, e universal na comunhão. Pela sua distintiva memória, por terem feito diferença no Seminário, tornaram-se uma pedra no sapato, até que preferiram voltar à República do Congo a vender a sua memória a custo baixo! O Padre Tati ficou até ao fim, pois estava mais adaptado ao clima, tendo passado pelo Seminário do Cristo Rei. Um sacerdote que foi seu professor e conferencista, tinha passado pelo Seminário do Cristo Rei como um meteoro rasga o céu escuro da noite: O Padre Leonardo Sikufinde. Era o ícone da memória, da auto-estima, da identidade humana, Ovambo, africana e universal. Chamava aos Seminaristas por um nome novo que denotava nobreza: Patrícios! Por defender a dignidade da memória, da justiça e da verdade, foi perseguido e tentaram “apagar “ sua memória, alvejando-o e misturando seu sangue com o asfalto quente de Ombadja! São 25 anos desde a sua fatídica morte! São 25 anos de memória e ninguém se esqueceu dele! Antes, o culto de sua memória aumenta a olhos vistos. O Padre Tati igualmente deste Servo de Deus e filho do Kunene: é preferível a morte à aniquilação da dignidade.
Os crimes contra a memória são crimes contra a humanidade e como tais não prescrevem!
Por isso, em nome da memória, em nome do Sacerdócio comum e do ministerial, eu apoio plenamente a marcha de 22 de Maio a favor da libertação do meu colega e de companheiros de cela, bem como da cultura da afirmação dos Direitos Humanos em Angola. Sei que muitos com quem privo, sacerdotes e religiosas, leigos e defensores de direitos humanos, estão com o Padre Tati e querem vê-lo fora da cela. Senão, não faz sentido o Exame Periódico Universal de Angola no Conselho dos Direitos Humanos da ONU, a que assisti dia 12 de Fevereiro último. Na mesma esteira, o discurso do Ministro das Relações Exteriores na 47ª Sessão da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, na nossa presença e na de todos os representantes da África, foi praticamente uma carta de compromisso com os direitos humanos. Tudo isto fica sem sentido. Angola foi mencionada, em declarações de activistas doutros países, com casos concretos de violações de direitos humanos. Angola prometeu reparar tudo isto. Inclusive, estão avançados contactos diplomáticos para que se realize em Angola, uma das Sessões da Comissão Africana em Luanda. Tudo isto é de aplaudir, quando tais iniciativas e compromissos correspondem ao respeito da dignidade da pessoa humana em nossa própria casa. Nos últimos dias, Angola foi reeleita para o Conselho dos Direitos Humanos, depois do primeiro mandato, iniciado a 3 de Maio de 2007. Muitos compromissos, entre os quais a protecção doméstica dos direitos humanos e uma cooperação com o Conselho, ficaram muito aquém das promessas. Temos de aproveitar essa oportunidade, como membros deste grande país, de afirmarmos a nossa dignidade, através do respeito restrito dos direitos e liberdades. Uma das liberdades ameaçadas em África é a do pensamento e de consciência. E estamos a escassos dias em que alguns países africanos irão celebrar os 50 anos de independência. Muito pouco mudou nesses países. As únicas referências de democracia em África são Cabo Verde, África do Sul e Benim.
Porque o Padre Tati continua preso, eu estarei unido a ele! Se na hora da manifestação, tiver conseguido o bilhete, irei para Cabinda, pelo menos para vê-lo, pois me constou que estava um pouco adoentado. Quero fazer isto, querendo Deus, antes de voltar a Genebra, dia 10 de Junho, data em que o Relatório do Exame Periódico Universal de Angola será finalmente adoptado. Se até lá, o Padre Tati não estiver livre, eu vou falar bem alto o nome dele e exigir a sua libertação já!
Padre Tati Massumu, que a protecção maternal da Virgem Maria neste Ano Sacerdotal te cuide e te preserve de todo o mal. Ámen!
Padre Jacinto Pio Wacussanga
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