04/05/2010

CRÓNICA DE FERNANDO PACHECO (2)

CONVERSA NA MULEMBA
A ILUSÃO (IV)


Ultrapassamos a primeira quarta parte do ano e um sentimento de desconforto atravessa quase toda a sociedade pela sensação de quase “paralisação” que o país parece viver. Uma explicação para tal poderá ser o facto insólito de não ter sido ainda publicado em Diário da República o Orçamento Geral do Estado para 2010, que, recordo, foi aprovado em Dezembro último. Diz-se que isto se deve à reestruturação do aparelho de Estado decorrente da nova Constituição, mas o mais inquietante é não ser dada uma explicação aos cidadãos do facto. As já conhecidas dificuldades do MPLA e do seu Executivo em lidarem com a comunicação social, aliadas a um certo menosprezo pela opinião pública, podem estar por trás desse comportamento, que prejudica sobretudo a imagem de quem tem o poder. Defensores indefectíveis desse poder em tempos passados têm vindo agora a manifestar uma certa frustração. Obras paralisadas, falta de pagamentos por parte do Estado a empresas privadas, atrasos de salários contribuem para o mau estar generalizado. Para agravar as coisas, a chuva voltou a fazer das suas. A governadora de Luanda, esta semana, considerou “péssima” a situação de grande parte da população na capital. Obviamente que a chuva não é a única responsável por isso.

Decorridos quase dois anos desde o início da presente legislatura, acho que já se deveria ter percebido que a maior parte das metas assumidas pelo MPLA não será alcançada. Um dos exemplos mais notórios é a construção de um milhão de casas. Contudo, as afirmações mais recentes dos responsáveis do sector da construção e urbanismo fazem crer que elas não apenas serão alcançadas, mas até ultrapassadas.

Dir-se-á que o desafio do milhão de casas poderá galvanizar o país a desenvolver a indústria de materiais de construção e criar um assinalável número de empregos. Seria correcto, porém, a realidade é outra. Embora seja verdade que alguns milhares de vivendas e apartamentos, principalmente em Luanda, estejam quase prontos, a situação generalizada não é famosa porque a abordagem não é a melhor. Dois anos volvidos sobre o lançamento da ideia, é inadmissível que o cidadão comum que queira construir a sua casa com meios próprios não o possa fazer porque não tem acesso a uma parcela de terreno. Com efeito, a auto construção será a estratégia que mais contribuirá para um eventual alcance das metas. Contudo, quando os responsáveis falam ao público, limitam-se a dizer que as reservas fundiárias estão criadas, mas as infra-estruturas como arruamentos, abastecimento de água e energia eléctrica e saneamento ainda estão muito atrasadas. Em todas as cidades as respectivas administrações continuam a acumular milhares de pedidos de terrenos para auto construção sem solução à vista.

Estamos, pois, perante mais uma perigosa ilusão, idêntica a outras que tenho vindo a denunciar, que no seu conjunto levam muitos angolanos a imaginar que o paraíso está ao virar da esquina. Porque somos “especiais”, não precisamos de estudar para saber, de trabalhar para viver, de tratar da água e do lixo e do saneamento para gozarmos de melhor saúde, de preservar o ambiente e do património cultural para cuidarmos do futuro dos nossos filhos. Os angolanos julgam-se os melhores do mundo porque se julgam ricos e que a sua riqueza tudo resolve. Inquietante, deveras inquietante, porque essa mensagem é passada pelos dirigentes e por grande parte da comunicação social. Mas a realidade é bem outra. Temos cerca de 60% de pobres, uma das mais altas taxas de mortalidade infantil do mundo, somos fustigados pela malária, temos milhares de crianças fora do sistema de ensino, as nossas universidades não fazem parte das 100 melhores de África, a esmagadora maioria da população não tem acesso a água potável e a energia eléctrica, enfim, estamos na cauda do desenvolvimento humano enquanto uma pequena elite beneficia de um escandaloso e obsceno nível de consumo.

Não admira, pois, que a conflitualidade social esteja em crescendo, principalmente no que respeita a questões relacionadas com a demolição de residências e a ocupação de terrenos. As nossas instituições cometem por vezes erros grosseiros, o que é natural dada a sua juventude e inexperiência. Um desses erros foi permitir, ao longo dos anos, construções anárquicas nas periferias das grandes cidades que criaram um sem número de problemas de urbanização e saneamento. Quando se pretende pôr cobro a tal situação, colocam-se inúmeros novos problemas que devem ser devidamente equacionados. O realojamento das pessoas exige capacidade negocial e a sua priorização na distribuição de casas sociais. Aí as instituições revelam grandes fragilidades, umas vezes por falta de capacidade e outras porque as preocupações com os pobres não são, de momento, a prioridade da governação, mais interessada na criação de uma burguesia nacional e com a modernização acelerada do país.

Os acontecimentos do Lubango e de Benguela foram muito reveladores. Se é legítimo que as autoridades queiram corrigir os erros do passado, são inaceitáveis os métodos utilizados. Não se pode entender que depois de tantos anos de ilegalidade e precariedade, não se possam esperar alguns meses para que as primeiras residências sociais estejam prontas para alojar quem tenha que ser desalojado. Como não se pode entender que, quando se acusam os pobres de violarem a lei, se aceita que os governadores da Huíla e de Benguela façam o mesmo sem sofrerem qualquer beliscadura, não respeitando, no primeiro caso, uma resolução da Assembleia Nacional sobre as regras a seguir no caso de demolições, e, no segundo, a própria Constituição no que respeita ao direito à manifestação.

Sintomático o pedido de desculpas do Executivo, na voz do ministro Bornito de Sousa, às populações afectadas no Lubango, que, estranhamente (ou não?), uma “certa” comunicação social ignorou.

Fernando Pacheco, 14 de Abril de 2010
Coordenador do OPSA

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