28/05/2010

A PROPÓSITO DE SEGURANÇA ALIMENTAR (Fernando Pacheco)

Transcrevemos, com a devida autorização do autor, o texto publicado no Novo Jornal a 21 de Maio de 2010

CONVERSA NA MULEMBA
A PROPÓSITO DE SEGURANÇA ALIMENTAR

Um ano após as conferências promovidas pelo Governo sobre agricultura e desenvolvimento rural, estes temas voltaram à agenda política angolana nas últimas semanas, com a Conferência Regional da FAO para África e com a visita de uma delegação do PAM que propôs às autoridades angolanas uma nova estratégia para melhoria e aumento da produção de alimentos. A segurança alimentar não está vinculada apenas à produção de alimentos, mas passa muito por aí. Em Angola, por exemplo, a segurança alimentar melhoraria significativamente se aos agricultores familiares, que representam com os seus agregados cerca de metade da população, fossem concedidas as condições adequadas para produzirem os seus próprios alimentos e, insisto, desse modo também contribuiriam para o mercado interno e possivelmente para a exportação, tal como acontecia antes da independência, é preciso sempre recordar.

Há um ano havia ainda algum optimismo sobre a implementação do programa do Governo para a agricultura e, consequentemente, a possibilidade de alcance das metas estabelecidas para 2012. O discurso oficial e as opiniões da comunicação social pública e de alguns empresários e de outros actores retomaram com a Conferência da FAO a ideia de que “agora é que vai”. Perdoem-me amigos e colegas, mas não posso partilhar de tal optimismo.

Habituei-me, ao longo de quase 35 anos de trabalho a favor do combate à fome, a acreditar que em África e em Angola o problema agrícola e alimentar não tem tanto a ver com as políticas públicas (policies), mas com a vontade política (politics) e com as estratégias para a sua implementação, tanto por parte dos governos africanos como dos países que dominam o mundo. Há cerca de dois anos, o Banco Mundial reconheceu a sua enorme culpa no abandono a que votou a agricultura dos países pobres. Na cimeira do G-20 de 2009 os EUA e outros países ricos prometeram aumentar a sua ajuda financeira (vinte mil milhões de dólares), valor que, segundo o Director Geral da FAO, corresponderia às necessidades anuais dos países africanos. Nada mudou na prática.

Mas os governos africanos têm mais responsabilidades. No início deste século, eles assumiram o compromisso de Maputo de concederem pelo menos 10% das verbas dos seus orçamentos à agricultura (já nos anos haviam dito o mesmo em Arusha). Ficámos agora a saber que apenas nove o fizeram. Angola, com os seus 2% está muito longe de honrar tal compromisso, nem isso é referido em documentos ou discursos oficiais. Mas todos sabemos que não é por falta de dinheiro, pois este aparece para outras despesas, em minha opinião muito menos prioritárias. Nós até temos uma boa estratégia de segurança alimentar, mas não vejo medidas para sua implementação adequada. Em contrapartida, temos visto como nos últimos dias estão a ser concretizados projectos para a modernização de algumas cidades, o que mostra que razão tem o Jornal de Angola ao dizer que “o Executivo está a apostar forte nas áreas urbanas”, e dá credibilidade a quem diz que as infra-estruturas têm prioridade por outras razões que não as de interesse nacional. Para quando igual aposta nas áreas rurais?

Após a Conferência de Luanda, os ministros africanos participaram num outro evento no Brasil sobre o diálogo entre este país e África, onde ouviram do Presidente Lula explicações sobre como o Brasil está a resolver o seu problema alimentar com base numa política agrícola que pode ter os seus detractores – e em parte com razão –, mas que “está dando certo”. Este sucesso explica-se pelo forte investimento desde há décadas na educação, na pesquisa e na capacitação dos agricultores. Ao contrário do que muita gente em Angola pensa, o agronegócio brasileiro destina os seus produtos fundamentalmente para a exportação (o Brasil passou de quinto para terceiro exportador de alimentos), sendo 70% dos alimentos consumidos internamente originários da agricultura familiar. A mesma receita explica os avanços na Índia, na China e no Vietname, países que algumas décadas atrás eram símbolos de fome aguda.

Os problemas da agricultura africana estão desde há muito identificados: infra-estruturas (principalmente estradas), conhecimento técnico e de gestão (para aumento da produtividade), acesso aos mercados, perdas pós colheita. Mais de 40% da produção agrícola africana perde-se por falta de meios de conservação e de acesso ao mercado. Qualquer agricultor angolano sabe que isto é dolorosamente verdade.

Tenho afirmado repetidamente que a meta de 15 milhões de toneladas de cerais para 2012 é irrealista, principalmente se continuarmos a insistir em grandes projectos para os quais não temos capacidade – e por isso têm falhado, principalmente em termos financeiros. Estou convencido de que a simples melhoria da qualidade das sementes e dos sistemas de comercialização permitiria quadruplicar ou quintuplicar a produção actual dos agricultores familiares (mais de 90% da produção actual que pouco passa um milhão de toneladas). Se a par disso se investisse na correcção de solos e no uso adequado de fertilizantes, as 15 milhões de toneladas estariam ao nosso alcance em três ou quatro anos, com a vantagem de ser muito mais barato e ambientalmente mais correcto. Possivelmente gastar-se-ia pouco mais do que se gastará com a “modernização” das cinco ou seis cidades que agora se aprovou e que vai atrair ainda mais gente do campo. Não é mau investir nas cidades. O que é mau é investir nas cidades antes de se investir no campo.

Fernando Pacheco, 19/5/10

Coordenador do OPSA

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