Os fundamentos para a elaboração e aprovação da Futura Constituição de Angola[i]
Por Marcolino Moco[ii]
1-Os fundamentos para a elaboração e aprovação da futura Constituição de Angola revestem-se necessariamente de natureza político-histórica e jurídica mas também ética, já que elemento basilar de qualquer ordem jurídica qualquer constituição não pode presumir-se apolítico - histórica muito menos antiética. Parece-me pois importante que o IDD tenha escolhido este tema para este colóquio, no momento em que muita poeira se procura levantar em torno de uma matéria que parecia já bastante liquida.
2-Quanto aos fundamentos histórico-políticos e jurídicos, eu vivi-os intensamente como um dos agentes activos do início do corrente processo constituinte, e, por isso, não apenas através de leituras teóricas algo distantes. E creio que estes fundamentos estão presentes na mente de todos os da minha faixa etária (e até um pouco mais abaixo) que sempre se interessaram pelo acompanhamento de processos dessa natureza. O que vou fazer agora é apenas reavivá-los para efeitos deste debate bastante oportuno, e, trazendo provavelmente a vantagem de terem sido matéria parcial dos meus “Estudos Jurídicos, volume II” cuja 1ª edição acaba de esgotar, no âmbito do relatório sobre Direito Constitucional, na parte lectiva do meu Mestrado em Ciências Jurídico-Políticas.
Como o afirmei a poucos menos de uma semana, em Benguela, numa das já famosas “Quintas de debates” promovidas pela dinâmica associação cívica “Omunga”, o momento constituinte e de transição democrática angolana não começou hoje, nem ontem. Começou, formalmente, em 1991, com uma revisão constitucional, através da Lei nº 12/91 de 6 de Maio da Assembleia do Povo, que abriu a possibilidade de criação de novos partidos, legalizou a Unita, no âmbito do culminar de um longo processo de paz, e acabou com o sistema de partido-estado ou partido único, em que, em sede da filosofia marxista- leninista, um único partido na organização política da sociedade, assume o poder político de forma exclusiva, e em nome das classes eleitas como revolucionárias, proclama-se como o partido orientador do Estado e de toda a sociedade[iii].
Esta constatação descritiva pode ser detectada em algumas das passagens importantes do preâmbulo da referida Lei 12/91, quando se diz:
Os princípios objectivos da presente revisão visam fundamentalmente, por um lado consagrar o pluripardidarismo e a despartidarização das Forças Armadas e, por outro lado, dar dignidade constitucional a importantes transformações que têm vindo a ser introduzidas na área económica através da legislação aprovada nos últimos anos. …………………………………………………………................
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Neste quadro, embora se trate de uma revisão parcial, as alterações em causa, pela sua natureza e envergadura, abarcam praticamente todos os títulos da Lei Constitucional, aconselhando por consequência a publicação integral do novo texto constitucional com as emendas introduzidas.[iv]
Num aproveitamento, que eu considero ainda dentro de uma certa ética política (tal como o MPLA em disputa com FNLA, tem reivindicado a paternidade exclusiva do 4 de Fevereiro_ política é um pouco isso mesmo) a Unita costuma apresentar-se como o exclusivo factor dessa transformação profunda, com a sua persistente e longa luta armada, após a proclamação da Independência Nacional. Porém, por experiência própria, posso afirmar que não foi o factor exclusivo, foi apenas “um dos …” e não o decisivo.
A minha adesão aos ideários do MPLA, numa zona que se tornou, em pouco tempo, desde 1974, uma quase exclusiva área de implantação da Unita (falo do Huambo), deve-se, entre outros aspectos, essencialmente à minha convicção de que o chamado socialismo científico era a única via de libertação da humanidade e o MPLA era, na altura, o que me parecia ser o grande depositário desta via em Angola. Provavelmente nunca cheguei a ser o que no auge daquela ideologia seria apelidado de revisionismo, no entanto, sendo um bom leitor do que se passava na antiga União Soviética, comecei a observar (especialmente a partir do sucessor, em 1982, do antigo dirigente soviético de nome Leonid Brejnev, sucessor, por sua vez, por afastamento, do polémico e jovial Nikita Kruchev, em 1964) que havia muita verosimilhança entre aspectos duramente criticados por Yuri Andopov (era o nome do sucessor de Brejnev) e algumas realidades do nosso socialismo em construção. Yuri Andropov dirigiu a URSS por pouco tempo, e por morte, deixou o lugar a outra personalidade efémera, de nome Konstantin Chernenko (mas deu para se assistir a um certo retorno ao passado de mitos) que é substituída pelo ainda hoje vivo Michail Gorbachov em 1985, que retomando o tom crítico ao sistema, eleva-o a uma dimensão de grande profundidade reflexiva e prática, que baptiza de glasnost (transparência) e perestroica (transformação).
Eu segui e bebi gota a gota os ensinamentos da perestroika e da glasnost de Michail Gorbachov, que a conduziram a desagregação do chamado mundo do socialismo real, e a minha ascensão a postos governativos nas províncias do Bié e Huambo entre 1986 e 1989, em que como governador, cheguei a assinar papelada para a distribuição de sapatos, televisores e até cerveja, ajudou-me a entender a grandeza, a coragem e a visão de um homem cujo mérito muitos tardaram e alguns ainda tardam em reconhecer. Por isso, não foi por acaso que apoiei vivamente, a nível do CC do MPLA, que passei a integrar, a partir de Dezembro de 1985, as reformas económicas conduzidas por José Eduardo dos Santos, então Presidente do MPLA e da República Popular de Angola.
É essa realidade que, partindo da perestroika, vai desembocar nas grandes reformas, um pouco por todo o lado, mesmo lá onde não havia tentativas de construção do chamado socialismo científico, como nos regimes africanos, também de partido-estado, mas de opção liberal capitalista. Viventes, nesses anos efervescentes que se sucederam ao grande evento simbólico, que foi a queda do Muro de Berlim, cujo 20º aniversário acabamos de celebrar, no início deste mês, podemos nos recordar da proliferação de conferências nacionais soberanas que alteraram, pelo menos no plano formal, o mapa africano, no domínio de regimes políticos.
Mesmo os próprios regimes capitalistas se transformaram. Na Europa o movimento de integração transnacional dá um passo gigantesco, com a aprovação do Tratado de Maastricht em 1992, e, voltando a África, é nessa altura que em Abuja, Nigéria, em 1991, os Estados Africanos assinam o tratado que cria a Comunidade Económica Africana, que embora hoje, aparentemente, não tenha ainda passado do papel, é na sua esteira que se tem impulsionado o movimento da integração regional. E, indubitavelmente, é desse élan que surge uma década depois, a transformação da OUA (uma organização mais virada para as questões da defesa das soberanias estaduais africanas) em União Africana, uma organização tendencialmente mais atenta a questões da pacificação do continente, da democracia, salvaguarda dos direitos humanos, da transparência e boa governação.
Tudo isso para concluir que o grande factor e fundamento do encetar do nosso processo constituinte actual, foi basicamente, o fim da chamada Guerra Fria, entre os antigos dois grandes blocos mundiais, que se confrontavam urbi et orbi, e que procuravam amarrar, irresistivelmente, às suas carroças, as restantes partes da humanidade.
No caso concreto de Angola, o processo constituinte atinge o seu ápice em 1992, com a Lei nº 23/92 de 16 de Setembro, também da Assembleia do Povo, mas antes negociada com a UNITA, no âmbito do processo da paz, por um lado, e no âmbito de uma conferência multipartidária com os partidos ditos não armados, então fundados e já organizados, por outro lado[v].
Devo abrir aqui um parênteses para dizer que esta história ninguém ma contou. Eu vivi-a, e nela participei, nessa altura, já como Secretário Geral do MPLA, principal coadjutor do Presidente do partido no poder, em transformação profunda.
Essa constituição, que é a Lei Constitucional actual, adoptou na generalidade e de forma bastante desenvolvida, os princípios gerais que regem os estados democráticos e de direito.
À semelhança do que fizemos com a lei de revisão nº 12/91, transcrevamos aqui uma passagem importante do preâmbulo da Lei 23/92:
As alterações à Lei Constitucional introduzidas em Março de 1991 através da Lei nº 12/91 destinaram-se principalmente à criação das premissas constitucionais necessárias à implantação da democracia pluripartidária, à ampliação do reconhecimento e garantias dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, assim como à consagração constitucional dos princípios basilares da economia de mercado.
Tratando-se apenas de uma revisão parcial da Lei Constitucional tão necessária quanto urgente, algumas matérias constitucionalmente dignas e importantes referentes à organização de um estado democrático e de direito ficaram de ser, como é devido, tratadas convenientemente na Lei Constitucional através de uma segunda revisão constitucional.[vi]
Como se pode ver, nesta e noutra passagens do diploma em referência, se tudo corresse bem, no fim das eleições legislativas e presidenciais de 1992, teríamos uma assembleia constituinte e um presidente eleito em sufrágio directo, secreto e universal, e a assembleia aprovaria a chamada Constituição de Angola, que entraria em vigor no momento que se achasse oportuno; uma constituição que em termos materiais pouco traria de novo, senão as questões formais de precisão, desenvolvimento e melhor arrumação dos preceitos, assim como, essencialmente, definir e fixar questões como o sistema de governo e mais um ou outro aspecto.
É mister acrescentar-se que durante o período de guerra que se viveu e pouco depois disso, o Presidente José Eduardo, mais pelo estilo próprio, do que pela sequência do que está estatuído na Lei Constitucional (embora viesse a ser reforçado por um parecer interpretativo do Tribunal Supremo, em 1998, que pessoalmente considero assente numa certa razoabilidade _ o que seria se, naquelas circunstâncias, o TS apresentasse um parecer em sentido contrário ou simplesmente diverso ou mesmo se se recusasse a emiti-lo, alegando incompetência?!) estabeleceu as linhas mestras de um sistema de governo presidencialista puro, embora com algumas incongruências, e que foi o inserido no programa do partido esmagadoramente vitorioso nas eleições de 2008, tornando-se assim amplamente sufragado pelo voto popular[vii].
Versamos assim, sobre os fundamentos histórico-políticos e jurídicos para a elaboração da futura Constituição de Angola, concluindo-se que as principais questões ligadas a estruturação de um estado democrático e de direito já estão fixadas e assentam numa realidade ancorada no processo das transformações mundiais de que somos co-construtores assumidos e de que nos não devemos subtrair, velejando para direcções imprevisíveis.
3-Aqui começa a entrar-se no domínio dos fundamentos éticos.
Consensualmente rejeitadas no pensamento hodierno, as visões positivistas e jusnaturalistas de encarar-se o Direito e por consequência de encarar as constituições, no caso concreto desse final do nosso processo constituinte coloco a questão de saber se a ética política e jurídica é ou não é chamada para nele intervir com os seus princípios.
Para mim, a resposta é inquestionavelmente sim. É preciso atender aos princípios éticos, numa matéria tão séria quanto sublime como é o caso da elaboração e aprovação de uma constituição.
No nosso caso, não é eticamente admissível que se passe por cima das conquistas e valores já incorporados no processo constituinte, que como dissemos, não começou hoje, nem ontem, a favor do cidadão eleitor. Por analogia, um dos mais importantes princípios do direito, neste sentido, aponta sempre para a aplicação da lei mais favorável, princípio que pode até anular a ideia da não retroactividade no tempo.
É aí que surge exactamente a questão do artigo 159º que devia prevenir eventuais apetências destruidoras de valores específicos da democracia já incorporados no processo das conquistas constitucionais dos angolanos, o que aparentemente, está a ser agora forçado, ao arrepio justamente do preceito acautelatório de eventuais abusos de maiorias esmagadoras, pelo actual poder constituinte.
Estamos aqui a falar concretamente do modelo de eleição presidencial por sufrágio directo, secreto e universal que não deverá ser trocado por uma forma de eleição indirecta qualquer, porque isso é ética, política e juridicamente inadmissível. Mesmo sem citarmos a doutrina, ou a jurisprudência comparada, isso é algo que se infere da razoabilidade e do bom senso que são princípios preexistentes e indispensáveis ao Direito: o que seria do mundo civilizado se não houvesse limites materiais a qualquer poder constituinte, maioritário ou super-maioritário[viii]?
Mesmo que razões houvesse, no plano meramente utilitário (mas sempre a favor do eleitor e não de interesses inconfessos de quaisquer membros do poder constituinte), em termos de forma _ e numa questão tão importante a forma vale praticamente o conteúdo _ não seria do modo displicente como a ideia foi apresentada, que as coisas se passariam num Estado que se queira fazer-se respeitar.
Reconheça-se que a mensagem passou e então surge o tal de Projecto (ou será pró-jeito?) C, onde a “emenda saiu pior que o soneto”. Aí, tentando fugir-se da violação da alínea d) do artigo 159º, mantêm-se nela e viola-se também o princípio da separação dos órgãos de soberania previsto na alínea f) do mesmo artigo, um princípio tão inerente a estruturação de um estado democrático e de direito, que nem precisava de ser protegido pelo artigo 159º. Repare-se que isso não tem nada a ver com a constituição da nossa irmã República Sul-africana, que tem eleição parlamentar do Presidente, sim senhor (e isso faz parte da sua história constitucional), porém não obriga o povo a eleger o Presidente na mesma lista que os deputados[ix], num jamais referenciado sistema dito “presidencialista-parlamentar” (isso só pode ser mesmo é para lamentar!).
Por isso é que eu venho dizendo, que não acredito que isso sejam meros equívocos de leitura jurídica. Estou convencido que aqui há mais qualquer coisa que não repetirei neste texto, porque considero-o estritamente científico, embora com alguma risibilidade (temos que saber rir, mesmo na desgraça) e sem citações e bibliografia, que poderei juntar mais tarde, quando o trabalho for distribuído. Pois, num trabalho que se pretende científico, considero que devemos evitar presunções, embora com fundamentos que me parecem tão evidentes.
Só me resta esperar (se o MPLA _ o detentor do poder constituinte _ não reparar o agravo) que o Tribunal Constitucional assuma as suas responsabilidades, nos termos das suas competências, previstas na actual Lei Constitucional e na sua Lei Orgânica[x].
[i] Prelecção no Colóquio promovido pelo Instituto de Desenvolvimento e Democracia (IDD), a 18 de Novembro de 2009, no Museu de História Natural, em Luanda.
[ii]Licenciado em Direito e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas, pela Universidade António Agostinho Neto e Doutorando em Direito, na Universidade Clássica de Lisboa.
[iii] Moco, Marcolino, Estudos Jurídicos, vol. II, Caxinde Edições / Prefácio Editora, Luanda / Lisboa, 2008, pp. 58 e 59.
[v] Moco, Marcolino, nota iii,idem.
[vi] Adérito Correia e Bornito de Sousa, nota iv, idem, pp. 37.
[vii] Deve acrescentar-se que o MPLA também elaborara e divulgara amplamente, antes, algo a que chamou de Agenda Nacional de Consenso que, do mesmo modo consagrava o sistema presidencialista clássico em regimes de estado democrático e de direito.
[viii] Veja-se Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pp. 65-82 e Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, 5ª edição, pp. 87-130. Parece que estes dois prestigiosos estão a ser lidos apressadamente ou interpretados de forma fraudulenta por alguns juristas da nossa praça, com fins inconfessos, quando eles (os dois grandes mestres portugueses do direito) deixam, expressa e claramente, a ideia que defendemos, neste particular.
[ix] Veja-se como a questão da eleição do Presidente é tratada na Constituição sulafricana:
Section 86 Election of President
(1) At its first sitting after its election, and whenever necessary to fill a vacancy, the National Assembly must elect a woman or a man from among its members to be the President.
(2) The President of the Constitutional Court must preside over the election of the President, or designate another judge to do so. The procedure set out in Part A of Schedule 3 applies to the election of the President.
(3) An election to fill a vacancy in the office of President must be held at a time and on a date determined by the President of the Constitutional Court, but not more than 30 days after the vacancy occurs.
Section 87 Assumption of office by President
When elected President, a person ceases to be a member of the National Assembly and, within five days, must assume office by swearing or affirming faithfulness to the Republic and obedience to the Constitution, in accordance with Schedule 2. (Net-Google-South Africa – Constitution)
[x] (Artigo nº 135º nº 3 da Lei Constitucional: “ Lei própria estabelecerá as demais regras relativas às competências, organização e funcionamento do Tribunal Constitucional”; alínea o) do artigo 16º da Lei Orgânica: “Ao Tribunal Constitucional compete em geral administrar a justiça em matéria jurídico-constitucional, nomeadamente:
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- verificar previamente a observância dos limites e procedimentos de revisão constitucional constantes dos artigos 158º, 159º e 160º da Lei Constitucional;”.
OBS: Este texto é transcrito na íntegra sob a autorização do seu autor.