20/11/2009

QUINTAS DE DEBATE: A ÉTICA, A POLÍTICA, O DIREITO E O MOMENTO CONSTITUINTE

A Ética, a Política, o Direito e o momento constituinte

Por Marcolino Moco

BENGUELA, 12 de Novembro de 2009

Concebi a ideia de apresentar este tema e título, na sequência de uma promessa feita no fim de uma entrevista tópica ao jornal semanário a Capital, na qual me propunha a dissertar um pouco sobre o positivismo e a “social engeneering”, como formas divergentes de conceber o Direito como ciência e prática, assim como expender algumas ideias sobre como terminar a nossa mudança transicional de regime político sem lesar as actuais normas constitucionais.

Sobre o primeiro aspecto (positivismo ou “social engeneering” na interpretação das normas constitucionais?) parece que o leit motiv da discussão foi formalmente eliminado. Com efeito, aqueles que nos acusavam de positivistas, porque nos recusamos a aceitar religiosamente as metamorfoses repentistas dos donos de um poder constituinte que julgavam ilimitado, já reconheceram, tacitamente, que desde que haja uma ratio iniludível por trás de uma norma jurídica, seja ela escrita, costumeira ou de outra natureza, não há como contorná-la “por da cá aquela palha”, sob o risco de se contribuir para uma perigosa banalização do Direito como ordem social e política e na sua função sublime de estruturação e harmonização das sociedades, nos tempos que correm e no quadro das opções livremente escolhidas. Se assim não fosse, não teriam passado para outra forma de acomodar juridicamente as ideia do líder, tentado agora baptizar de “sufrágio directo e universal” a uma forma de eleição presidencial em que a candidatura não é uninominal e nem são permitidas candidaturas independentes fora de listas partidários. É preciso dizer mais para logo se ver que os técnicos do poder constituinte, convencidos do poder mágico da sua sabedoria, não concebem que existam outros seres pensantes por estas terras afora? Para eles, tudo é um deserto de ideias. Isto é que é, afectivamente, o que certos autores, referidos pelo nosso conhecido Professor Castanheira Neves, chama de “social engeneering”, em que juristas se limitam a escrever e a dizer o que os políticos ditam, mesmo que se contrarie frontalmente os valores e princípios que conformam o Direito.

É evidente que, até pela nossa experiência, sabemos que isso acontece, provavelmente por duas razões: ou porque há uma pressão política dificilmente contornável, ou_ aqui volto ao tema da violação subtil do direito à informação pelos meios públicos, já abordado numa recente entrevista on line, ao “notícias lusófonas” _ porque habituados a ser projectados como as únicas sumidades do Direito em Angola, esses nossos colegas de ofício e pensamento, não conseguem admitir a mínima possibilidade de serem contrariados, em termos científicos, pelo resto da pobre paisagem circundadante. É evidente que ainda não tocamos no tema em que nos vamos debruçar: sobre o como, na nossa óptica, a ética, a política e o direito devem interagir razoavelmente. Porém, podemos desde já adiantar que isto não é ético, não é político, muito menos direito; e, se não é torto, no mínimo, é tortuoso.

De todo o modo, é muito satisfatório que se tenha reconhecido que defender o artigo 159º da actual Lei Constitucional, na sua letra e espírito, não é positivismo, no sentido de, nesta visão de interpretação do Direito, não se reconhecer a necessidade da alteração da norma diante da evolução das variáveis sócio-históricas e políticas; que essa nossa posição radica, justamente numa ratio legis, historicamente actual, até com o tipo de atitudes em análise, e que se consubstancia na ideia de evitar que maiorias esmagadoras ou personalidades autocentradas venham por em risco as conquistas obtidas pela comunidade, em determinado troço de um processo jurídico-constitucional.

Aqui chegados, cumpre-me passar para outro aspecto deste momento constituinte, em que eu pareço ter uma posição estranha.

Na verdade eu vejo demasiados analistas e até dirigentes de partidos políticos atrás do que posso chamar de canto da sereia, entoado pelo detentor do poder constituinte, que é a suposta super- importância da elaboração da Constituição Angolana, com a ideia subjacente de que até agora não tínhamos constituição nenhuma ou quase nenhuma. Alguns vão mesmo ao ponto de aplaudir a subtil ideia de que a actual Lei Constitucional aprovada, formalmente, em tempo de monopartidarismo e por isso mesmo de natureza provisória, teria pouca ou nenhuma legitimidade para ser invocada neste momento transcendental. Arrisco-me a acabar afundado no oceano do politicamente incorrecto (nunca tive medo de riscos), mas creio, pelo menos, que ainda não apanhei nenhuma finta neste percurso, ao contrário dos outros que vão despendendo as suas energias atrás de dribles inesperados, tão talentosamente “fundamentados” em poderosos meios de comunicação, pelos arautos do poder constituinte.

Desde o principio que venho afirmando, a partir de um pequeno artigo escrito para o “Semanário Angolense” de Dezembro de 2008, que salva a devida importância da questão de mérito que é a elaboração da formalmente designada Constituição de Angola, o mais grave nisso tudo eram as duas questões prévias relativas: primeiro, à aparente pretensão de passar por cima dos limites materiais da constituição vigente ao poder constituinte, criando um precedente nada abonatório; segundo, mas muito importante, deixar o país numa situação de indefinido período pré-eleitoral, com os prejuízos que ninguém duvida que disso podem advir na destinação dos recursos, com o adiamento sine die das eleições presidenciais, sob o pretexto da necessidade de aprovação prévia da nova constituição, com argumentos nunca antes esgrimidos.

Bom, sob a primeira questão, estamos conversados e não sou eu que apanhei a finta. São até muitos dos próprios detentores do poder constituinte que a levaram monumentalmente. A bola passou-lhes mesmo, por entre as pernas.

Sobre a segunda questão, reitero a posição que deixei expressa há dias, falando para a Rádio Eclésia e também e também para a TV-Zimbo (só não sei se saiu alguma coisa).

Aí eu disse que afinal a questão é mesmo o que eu suspeitava: discutam este problema que já está resolvido enquanto eu cá vou preparando umas coisas. E disse a tal heresia: A elaboração da Constituição é importante só que as principais questões já estão resolvidas, porque o processo constituinte do transição democrática angolana não começou hoje, nem ontem. Começou em 1991, com a provação de uma constituição ( a Lei nº 12/91 de 6 de Maio da Assembleia do Povo) que abriu a possibilidade de criação de novos partidos, legalizou a Unita, no âmbito do culminar de um longo processo de paz e acabou com o sistema de partido-estado. Tudo isso na sequência da queda do Muro de Berlim, cujo 20º aniversário acaba de ser celebrado, quando muitas coisas começaram a mudar no mundo e nós também tivemos que mudar e seguir em frente, de acordo com as nossas condições, sem reservas mentais, pelo menos era assim que eu pensava, ao participar activamente, nesse processo de mudanças. Em 1992, com a Lei nº 23/92 de 16 de Setembro, também da Assembleia do Povo, mas antes negociada com a UNITA no quadro do processo da paz, por um lado, e no âmbito de uma conferência multipartidária com os novos partidos então criados e já organizados, por outro lado, atinge-se o ápice do processo constituinte. Essa constituição, que é a Lei Constitucional actual, adoptou, na generalidade e de forma bastante desenvolvida, os princípios gerais que regem os estados democráticos e de direito. Se tudo corresse bem, no fim das eleições legislativas e presidenciais desse ano, teríamos assim uma assembleia constituinte e um presidente eleito em sufrágio directo, secreto e universal, e a assembleia aprovaria a chamada Constituição de Angola, que entraria em vigor no momento que se achasse oportuno; uma constituição que em termos materiais pouco traria de novo, senão as questões formais de precisão, desenvolvimento e melhor arrumação dos preceitos, assim como, essencialmente, definir e fixar questões como o sistema de governo e mais um ou outro aspecto; e é aí que surge exactamente a questão do artigo 159º que devia prevenir eventuais apetências destruidoras de valores específicos da democracia já incorporados no processo das conquistas constitucionais dos angolanos, como já disse atrás, o que aparentemente, está a ser agora forçado, ao arrepio justamente do preceito acautelatório de eventuais abusos de maiorias esmagadoras.

Durante o período de guerra que se viveu e pouco depois disso, o Presidente José Eduardo, mais pelo estilo próprio, do que pela sequência do que está estatuído na Lei Constitucional (embora viesse a ser reforçado por um parecer interpretativo do Tribunal Supremo, que pessoalmente considero assente numa certa razoabilidade _ o que seria se, naquelas circunstâncias, o TS apresentasse um parecer em sentido contrário ou simplesmente diverso ou mesmo se se recusasse a emiti-lo, alegando incompetência?) estabeleceu as linhas mestras de um sistema de governo presidencialista puro, embora com algumas incongruências, que foi o inserido no programa do partido esmagadoramente vitorioso nas eleições de 2008. Ora havendo já esse consenso contra legem em relação ao sistema de governo a adoptar, o que faltava mais para apurar as últimas formas da carta magna de Angola? Bandeiras, insígnias? São questões que também já estavam praticamente definidas; não constavam nos limites materiais e era uma das áreas em que a oposição perdera uma oportunidade para facturar (e eu, pessoalmente, penso que seria muito bom para simbolizar uma nova Angola) com aquele abandono fatídico da Comissão Constitucional anterior às eleições, caindo em fintas menos antiéticas, menos antipolíticas e menos tortas do que as actuais, certamente, porque o partido no poder era menos maioritário do que hoje.

Afirmar que a futura Constituição de Angola, a ser aprovada pela actual assembleia constituinte deve merecer todo esse empolamento e justificar o adiamento, sine die das presidenciais, porque a evanescente Lei Constitucional é menos legítima, só pode ser um dito fintatório ou de quem na altura, por alguma razão, não teve condições objectivas ou subjectivas de poder analisar as dificuldades e o ambiente de efervescência e pluralismo democrático que o MPLA e o seu Presidente tiveram de enfrentar, se comparado com o passeio pela avenida com que se aprovará a nova constituição pelo praticamente partido único de hoje. A menos que se continuem a criar dificuldades artificiais, como as uqe estamos a presenciar e num ambiente de conformismo gritante, sob o manto deste estranho fenómeno que o proeminente jornal de Graças Campos, com todo o mérito, decidiu baptizar de eduardismo; este fenómeno que palpita talentoso nas caracterizações de outros jovens e veteranos homens das letras e ciências como Justino Pinto de Andrade, Siona Casimiro, Gustavo Costa, Aguiar dos Santos, Fernando Macedo, Ismael Mateus, Reginaldo Silva e tantos outros, alguns dos quais amordaçados nos meios de comunicação pública, onde têm de fazer o seu ganha pão.

Agora um país democrático, com todas as condições para o efeito, e sem o seu mais actuante e importante órgão de soberania sufragado pelo voto popular?! Vão me dizer que esta é uma questão de forma? Para mim é justamente aqui, que encaixa como uma luva, o brocardo filosófico que afirma não haver conteúdo sem forma. Já citei um dos prejuízos que, em tese, podem decorrer duma situação dessas, em que se vive em indefinida situação pré-eleitoral. Mas já sei, e sei que pelo menos alguns de vocês também já conhecem alguns prejuízos concretos que estamos a sofrer com isso. Porém, como devem saber, eu sou professor, e os professores têm sempre a mania de deixar trabalho de casa para os outros. Então deixo-vos este trabalho de casa. Para mim só me resta repetir: isto não é ético, não é político, nem é direito.

Sabe-se que alguns dizem, e vemos isso por alguns comentários às nossas posições, que falar-se de democracia pura em África é perder tempo. Precisa-se de chefes que decidem sobre tudo. Feliz e infelizmente de quem é que se ouvem estes impropérios? De alguns poucos mais velhos que estão no poleiro, mas, também de demasiados mais novos que nunca viram, nunca viveram e mal ouviram ou estudaram, com profundidade, o que são e como acabam as ditaduras. O meu conterrâneo, político e membro activo da sociedade civil Abel Chivukuvuku deu, no “Semanário Angolense da semana passada, alguns exemplos do fim das ditaduras umas abertas outras mais ou menos disfarçadas; algumas até, aparentemente, “bem intencionadas”: Côte d’Yvoire, Zaire, Somália, etc., etc..

Não é preciso falar-se de democracias puras: não existem. O MPLA é um dos maiores partidos de África em todos os sentidos, e é o maior de Angola. Aos camaradas que estão a ser convencidos que só com este tipo de fintas é que nos vamos manter no poder por muitos anos (tenho legitimidade para falar: o MPLA viu-me crescer e eu vi crescer o MPLA) eu digo, como já o disse algumas vezes aqui do alto da minha informalidade: não é esta a minha opinião; o que acredito é que para Angola não há melhor que um MPLA subordinado aos princípios éticos e políticos de uma democracia moderna e conformada pelos princípios do Direito interno e internacional. E tenho dito: mesmo se eventualmente alguma vez, em nossas vidas o MPLA estiver fora do poder, desde que persista em contribuir para uma verdadeira cultura democrática, nunca o MPLA deixará de ser o grande factor que é, de unidade nacional e de grande promotor da felicidade de todos os angolanos, sem discriminar nem impedir o protagonismo de outras entidades políticas e sociais.

Perguntam como é que seria começar o mandato do novo presidente com nova constituição? Eu é que pergunto se exímios juristas já se esqueceram do mecanismo da vacatio legis. E com tanto sentido de antecipação que se conhece, porque é que não se viu isso antes de 5 de Setembro de 2008?

Já não falarei mais dos limites materiais do poder constituinte, concordantes que estamos que eles existem. E que “ais” pelo mundo se não existissem? Podem ser retirados? Sim. Nada é eterno. Mas quem é o jurista ou mesmo leigo interessado em acompanhar estes assuntos que não conhece as formas adequadas, em que não se desrespeite o povo como detentor do poder soberano, numa república como a nossa?

O Presidente já não quer? Discuta-se isso no seu partido, com franqueza, e depois com a oposição, se possível. Os angolanos já passaram por dificuldades maiores e resolveram os problemas e aí o Presidente ganhou uma endurance e um carisma que, acredito, poderia ajudar nesta situação até para prevenir, se é este o caso, os síndromes “chiluba”. Façam-se eleições presidenciais, já, com a actual ou com a nova constituição. Mas como, com as despropositadas manobras dilatórias efectuadas até aqui, “já” jà não pode ser este ano de 2009, que o Presidente consulte o Conselho da República e se definam, com seriedade, para quando as eleições presidenciais, sem o escândalo actual do controlo unilateral dos meios de comunicação pública, com uma política de meios privados de comunicação não discriminatória e que os candidatos e partidos políticos tenham tempo igual para pensar e traçar as suas estratégias; e que nesse tempo, seja dado tempo para que o MPLA e o Presidente José Eduardo dos Santos tenham tempo de resolver o problema de uma sucessão civilizada, à imagem de Angola e não dos piores exemplos de África, que só nos envergonham, como filhos deste continente; embora estrangeiros, diplomaticamente, nos dêem pancadinhas às costa e nos digam que estas é que são as geniais vias africanas de liderança, só porque se impacientam com o tempo que precisamos para nos organizarmos com seriedade. Tudo isso não deveria levar mais de um ano. Algo que não chegaria a toda essa complexidade, se o presidente de Angola, que seria seguramente José Eduardo dos Santos, com mais ou menos votos que o MPLA, na primeira ou na segunda volta, tivesse sido eleito em 2008 ou 2009, com tempo para sair em grande, com um sucessor qualquer que fosse, desde que angolano, e com as questões fundamentais, senão resolvidas, pelo menos equacionadas. Se há males que vêm por bem, então que se aproveite este tempo para criamos uma verdadeira Nova República, sem reservas mentais, onde mesmo com algumas fintas, que estas sejam feitas dentro das linhas do campo de jogo e não fora de campo, só para alguns. Injustiça gera injustiça, violência, mesmo branda, gera violência; na linha do brocardo latino abissus abissum invocat: “um abismo chama outro abismo”. Sejamos justos.

Eu penso que é possível; não é fácil, mas é possível, envolvermo-nos no triângulo amoroso constituído pelos três elementos que venho referindo nesta dissertação despretensiosa: a ética deve ocupar o ângulo recto e cimeiro desse triângulo para imperar sobre a política e o direito; onde a política contribuía para relançar uma nação que se constrói a partir de várias nações, parafraseando Agostinho Neto; e onde o direito assuma o seu papel de formulador de comandos justos e exequíveis, porque assentes na razoabilidade e no bom senso. Dentro de uma interdependência harmoniosa, nenhum dos ângulos se coloca em posição de subserviência em relação aos outros, pelo que cada um formula de forma autónoma as suas regras e princípios. Só assim, deste triângulo amoroso, podem nascer e crescer muitos filhos saudáveis e robustos, tais como:

1-Um estado de justiça, paz e democracia económica, social e cultural.

2- Um Estado confiável e criador de expectativas positivas em todo o seu tecido multiétnico e multicultural, porque assente na transparência da sua actuação quotidiana.

Isto é que seria ético, político e direito. O resto é torto e tortuoso


MARCOLINO MOCO é jurista, director da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Angola. Foi governador das províncias do Bié e do Huambo, Ministro da Juventude e Desportos. Foi ainda Secretário geral do MPLA e 1.º Ministro do Governo da República de Angola.

Desempenhou também as funções de Secretário Executivo da CPLP e de deputado à Assembleia Nacional.

É Mestre em Ciências Jurídico Políticas na Universidade António Agostinho Neto, doutorando em Direito na Universidade Clássica de Lisboa.

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