26/08/2010

HOMENAGEM A NATANIEL MACAMO

Adeus, ‘kota’ de lutas!

Por Ericino de Salema

Uma das coisas mais importantes para o trabalho do jornalista são os promotores de notícias, o que vulgarmente se chama de fontes. Particularmente quando essas fontes estão bem posicionadas e, por essa via, possuem informação privilegiada. Sobretudo num contexto como o nosso, de crónico secretismo informativo.

Mas há daquelas fontes que, dada a natureza do seu trabalho, têm que ser muito mais que simples fontes. Precisam ter competência comunicativa, exercício no qual a história há muito provou ser crucial que se saiba, em termos básicos, qual é o ‘dicionário’ do jornalista; ou seja, o que o jornalista gosta ou espera ouvir, para que possa processar a sua peça.

De entre esse tipo de fontes, há a destacar as policiais, que, em condições ‘normais’, mantém uma ligação regular com os media. Quando se está em crise, essa ligação tem que ser mais ligação. Andar a fugir dos jornalistas, como alguns porta-vozes às vezes fazem, é ao todo mau. Falando, discutindo, abrindo-see aos repórteres, sempre se passa alguma mensagem.

Em 2001, coube-me a tarefa de investigar um assunto sobre desvio de um título do então Ministério do Plano e Finanças, um caso que envolvia, por um lado, indivíduos que do crime (sobre)viviam, e, doutro, a instituição policial, esta última por dois motivos: i) aos gendarmes, como é óbvio, compete investigar os actos ilícitos, puníveis e tipificados na lei; e ii) e, nessa investigação que desenvolvia, fiquei a saber que havia fortes indícios de uma ‘estrutura’ do Ministério do Interior ter recebido ‘luvas’, para soltar o homem que era tido como a peça fundamental da fraude aos fundos públicos.

Sendo o contraditório indispensável no jornalismo, tinha mesmo que ouvir a referida ‘estrutura’, para que se pronunciasse sobre o que sobre ele colhera. Na verdade, mesmo quando temos fontes documentais, nada perdemos em ouvir pessoas cujos nomes aparecem, de forma substancial, na nossa investigação jornalística. O que muitas vezes pensamos ser prova, às vezes não passa de indício, e este pode estar ao nível da evidência!

Para chegar à fala com a referida ‘estrutura’, tinha que falar com o porta-voz do Comando Geral da Polícia dessa altura. Liguei para o dito cujo, que, de imediato, mostrou-se aberto a receber-me, assim que fosse tê-lo. Lá me fiz, tendo, nesse encontro, me dito mais ou menos o seguinte: “Conheço esse caso, e os dados que tens são mesmo quentes; vou explicar tudo isso ao chefe e depois vou-te ligar”.

Dito e feito, lá me ligou, na tarde do mesmo dia, anunciando que no dia seguinte, pelas 9 horas, a ‘estrutura’ iria receber-me, no seu gabinete de trabalho. Anunciei isso ao Salomão Moyana, que era o meu editor na altura, para que me apoiasse no alinhavamento das questões. No dia e hora combinados, achava-me eu no sítio referido, na companhia de Luís Muianga, repórter fotográfico.

“Sejam bem vindos, meus caros. Vamos entrar”, assim nos recebeu o na altura porta-voz do Comando Geral da Polícia, seguindo de imediato ao gabinete da ‘estrutura’. Quando lá entrámos, o dito cujo estava bem sentado no ‘lugar do chefe’, que ele bem o era, e, nos demais lugares da sua grande secretária, estavam ilustres generais da Polícia, bem fardados. Todos eles já estavam acima dos 50 anos ou perto disso, à excepção de Zainadine Jamaldine, jovem jurista que, na altura, era investigador da Polícia de Investigação Criminal.

O colega Luís Muianga entrou para aquela sala já pronto a ‘disparar’ com a sua máquina fotográfica, mas quase que a deixava cair quando notou que, afinal de contas, a ‘estrutura’ estava com a sua equipa de topo, transpirando todo o poder que lhes é característico. À saída, o Muianga confessou-se: “Cheguei a pensar que dali íamos a cela”.

A ‘estrutura’ pediu para que eu colocasse as questões que tinha. Disse-lhe que tinha sim muitas questões, mas para ele e não para aqueles todos. Fez a relevante apresentação dos seus homens e explicou por que razões a conversa tinha que decorrer daquela forma. Dei, mesmo sem o poder estadual que eles tinham, procedência ao pedido, tendo o encontro prosseguido.

O ‘chefão’, reagindo às questões, começou por dizer que conhece o caso, e que “também conheço as tuas fontes”. Afirmou ainda que o que se dizia sobre ele – que tinha recebido 1.5 bilião de meticais para soltar o cabecilha da gang – visava simplesmente manchar o seu bom nome. As fontes até tinham providenciado documentos que consubstanciavam que…

Depois de dar-nos uma ‘palestra’ sobre o modus operandi dos criminosos, pediu-me para que nada escrevesse, como forma de não perturbar as investigações. Respnondi-lhe, como é óbvio, que não lhe podia dar garantias de que não publicaria algo sobre aquele caso, pois estávamos a operar em campos bem distintos, cada um com a sua lógica. E, ao cabo de hora e meia, o encontro terminou.

Dali em diante, enqaunto prosseguia com as minhas investigações, o porta-voz “não largava o meu pé”, como diria o outro. Telefonava-me quase que corriqueiramente, a pretender saber se estava bem, se não tinha nenhum problema…como se o Messias tivesse regressado ao Planeta Terra!

Mas, nisso, sempre mostrava ser um profissional, comunicando como lhe era habitual, quando desse os seus briefings à imprensa ou quando fosse à radio ou à televisão dizer que “neutralizámos esta quadrilha por estarmos sempre no terreno para garantir a ordem e segurança públicas”, como se, nalgumas vezes, a Polícia, toda ela, ia de férias. Com ele, fiquei certo de que, no sector de Defesa e Segurança, nunca há fontes, mas apenas o que José Rodrigues dos Santos chama de ‘minders’, qualquer coisa como moldadores da consciência dos jornalistas.

Duas semanas depois, a reportagem foi publicada, com todos os dados e detalhes que tinha sido possível apurar. Na manhã daquela sexta-feira, o jornal já na rua, o ilustre porta-voz ligou-me, para dizer uma coisa tão simples quanto esta: “Estás de parabéns. Agiste profissionalmente”.

Alguns anos depois, ele, já na categoria de General da Polícia, deixou de ser porta-voz, passando a mostrar o seu activismo na Direcção de Policiamento Comunitário, no qual já não era, nos últimos dias, muito activo, por razões que confesso desconhecer. As aulas que dava na Academia de Ciências Policiais certamente que o punham ligado à dinâmica das coisas.

Na primeira semana de Junho deste ano, com ele conviví, na cidade de Benguela, em Angola, onde ambos nos encontrávamos a participar de um acampamento de direitos humanos, para activistas dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. Durante a apresentação que fez sobre “Polícia e Direitos Humanos”, mostrou ser uma pessoa lúcida e cheia de energia, tendo merecido o aplauso de todos.

Jovem que era, em termos de ideias e vivacidade, não deixava de se juntar a nós os outros nas ‘investidas’ que fazíamos na noite de Benguela, começando sempre com o jantar. Que o digam os manos Custódio Duma, Nomier Bazo, Anastácio Nhomela, Dário, Leo, Quitéria e Lurdes.

Na manhã desta quinta-feira, 26 de Agosto, recebi um telefonema de um amigo, anunciando que Nataniel Macamo, o homem a quem dedico estas linhas, perdera a vida na noite do dia anterior (quarta-feira), por ataque cardíaco, a bordo de um avião. Situação que vem provar, uma vez mais, que a condição sine qua non para morrer é estar vivo.

Até sempre, ‘kota’, como te tratavam os colegas angolanos em Benguela. Descanse em paz, ilustre Nataniel Macamo!
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Ericino de Salema
Journalist & Media Researcher
Maputo-Mozambique
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