Depois de ter participado de todo o processo de elaboração da Constituição, a UNITA abandonou a sala no momento da votação de especialidade e não compareceu por ocasião da votação na generalidade. O que foi que, de facto, motivou essa atitude dos parlamentares do maior partido da oposição?
Os deputados agiram de moto próprio ou obedeceram a uma estratégia da direcção do partido?
A Constituição que se pretendia aprovar contém normas que violam dois princípios que a Lei impõe ao poder constituinte como limites materiais, nomeadamente o princípio da eleição directa e o princípio da separação de poderes. Caíu,assim, numa ilegalidade que a ilegitma. Sempre dissemos que não pactuaríamos com ilegalidades. Ademais, este documento contém normas que encerram actos de obliteração da democracia. Quer dizer, não tendo havido a eleição do titular do órgão «Presidente da República» em 2009, e aprovando-se agora, em 2010, um novo sistema de governo, que concentra no Presidente da República poderes não limitados por outros poderes, Angola terá um Presidente com poderes executivos, legislativos e jurisdicionais, em violação aos princípios da democracia presidencial, sem mandato do povo, sem prazo e sem prestar contas. Significa então, que as eleições presidenciais não foram convocadas de propósito, já contando que a proposta C permitiria aos golpistas perpetuar os poderes do actual Presidente. Este é um acto de obliteração à democracia e à Constituição, atentatório ao princípio da boa fé. É um golpe de Estado. Portanto, quiseram servir-se do princípio maioritário – que é um princípio da democracia - para destruir a própria democracia.
Todos os dirigentes da UNITA (os deputados do Grupo Parlamentar da UNITA são, quase todos, membros da Direcção do Partido) e as suas bases, perceberam isso.
Qual é a mensagem subjacente nessa retirada?
Não pactuamos com a ilegalidade nem a subversão, mesmo aquela engendrada por professores de direito, que é mais subtil. Votar contra não seria suficiente, porque não se votam ilegalidades. As ilegalidades devem ser repudiadas e combatidas. Mesmo que sejam cometidas ou apadrinhadas por religiosos, professores de Direito ou políticos. A forma mais eficaz de chamar a atenção das pessoas para a gravidade da situação foi a saída da sala. Este é um dos objectivos que procuramos atingir.
Que efeitos pensa que ela (a retirada) terá junto da opinião pública?
Recebemos muitas expressões de encorajamento e de apreço de todas as partes do país, embaixadas e do estrangeiro, por este acto pacífico e corajoso em defesa do Estado de Direito.
Por várias vezes disse, em conferência de imprensa, que o seu partido tomaria atitudes mais sérias caso fosse pisada a linha vermelha. Já foi pisada?
Por que razão os representantes da UNITA não abandonaram antes o processo, uma vez que as reclamações anteriores do vosso partido já sugeriam um fim como esse que vemos agora?
Fomos em boa fé para contribuir ao máximo para um processo inclusivo e legítimo. Quisemos dar ao MPLA o benefício da dúvida até ao fim. A linha vermelha foi pisada quando se consumou o golpe constitucional.
De vários quadrantes do país, opiniões expressas nos meios de comunicação social públicos, reprovam com recurso a vários adjectivos a atitude dos parlamentares da UNITA. Já agora, como reage perante tais pronunciamentos?
A comunicação social do Estado não promove a pluralidade de opiniões. Confunde notícia com propaganda. Certamente que a propaganda do regime, optou por uma política de insulto e de intimidação que procura transformar o ofensor em vítima. Desprezamos e condenamos esta política. Em Portugal, no Brasil, na França, em todo o mundo, é normal os deputados abandonarem a sala quando querem protestar. Na Rússia, por exemplo, em Outubro do ano passado, três grupos parlamentares da oposição na Duma Estatal (Câmara Baixa) do Parlamento abandonaram a sala de sessões em sinal de protesto contra o facto de o Partido Rússia Unida se recusar a discutir “a falsificação dos resultados eleitorais”. É um acto normal que o regime procura subverter contra os interesses superiores do povo angolano. Quem perde com esta cultura de violação sistemática da lei, de formatação das mentes, de intoxicação da opinião pública, são os angolanos, e não a UNITA. O que se está a passar é um golpe contra a democracia, contra a dignidade e o progresso dos angolanos, não contra a UNITA.
Há quem disse que a UNITA tinha duas alternativas, votar contra ou abster-se. Nenhuma dessas opções servia os vossos interesses?
Quem disse isso está errado e formatado. No Estado de Direito, as ilegalidades não devem sequer ser submetidas a votação. O número 2 do Artigo 152˚ do regimento da Assembleia Nacional impede os deputados presentes na sala de não votar. Para exercer o direito de não votar, os deputados tinham de abandonar a sala. Caso contrário a posição deles seria tida como abstenção, ou neutralidade. E os Deputados do povo não podem mostrar neutralidade quando os adversários da causa do povo agridem a democracia, violam a Lei em plena casa das leis e utilizam o mandato do povo para defraudar o povo.
Falou-se, ainda, em falta de sentido de Estado e de alguma irresponsabilidade. Vê-se, a UNITA, perante tais acusações?
Disse o primeiro-ministro que os Angolanos já se vão habituando às ausências da UNITA em momentos decisivos para a vida do país. Será verdade, afinal não é a primeira vez que o partido opta pela chamada política de «cadeiras vazias»?
A UNITA prestou um grande serviço ao povo angolano. Os angolanos deveriam perguntar-se: “Mas com tal maioria abusiva, porque é que o MPLA está tão preocupado com a UNITA? Se não fez questão de escutar as opiniões da UNITA; se disse que aprovaria o seu projecto sozinho, que tem mandato para tal, porquê tanto alarido?” Alguma coisa não joga. E o que não joga é que o MPLA precisava da presença da UNITA para de certo modo legitimar o seu golpe e o estado tirano constitucional. O Estado tirano é aquele que institui e pratica o totalitarismo legitimado democraticamente pelo princípio maioritário. A UNITA sentar-se-à sempre na cadeira da dignidade e da democracia, mas deixará vazia a cadeira dos golpes constitucionais, que utilizam a democracia para destruir ou subverter a democracia. Lá onde se pretender reunir para promover a delapidação dos recursos públicos, ou utilizar-se o Estado para fins privados, a UNITA estará orgulhosamente ausente. Lá onde se pretender promover a verdadeira democracia, o Estado de Direito e a tolerância zero contra a corrupção política, constitucional ou económica, a UNITA estará orgulhosamente presente. O sentido de Estado não se manifesta através de golpes constitucionais nem através de violações à Lei estabelecida.
A oposição saiu fracturada nesse processo todo, aquela que parecia uma ideia comum acabou, digamos, quebrada com alguns deputados de partidos da oposição a votar a favor da nova Constituição. O que lhe parece?
Na questão constituinte, não há governo nem oposição, porque estes são poderes constituídos. Em matérias constituintes, os Partidos podem ter opções políticas similares, mesmo estando em campos diferentes. Mas todos estão obrigados a observar os limites estabelecidos. Nas questões de política ordinária, os angolanos já não consideram a oposição como um bloco homogéneo. Eles sabem que governo e oposição são instituições democráticas com funções próprias, que não se confundem, nem no seu objecto nem nos sujeitos. Sabem também que os partidos na oposição podem ter opções políticas divergentes. Podem até pactuar com a corrupção política, com a chantagem ou mesmo com a violação à Lei. O povo sabe distinguir e identificar quem defende os seus interesses.
O que, de facto, preocupa a UNITA nessa nova Constituição, do ponto de vista, claro, de conteúdo?
A forma de eleição do PR é a questão fundamental, ou há outras com as quais o seu partido não concorda?
Existem pelo menos dez questões sobre as quais não houve consenso no seio da Comissão Constitucional, das quais destacamos: a questão da terra; a conformidade dos símbolos nacionais ao regime democrático; o sistema de governo; o controlo e tutela da comunicação social do Estado pelo Executivo; a independência da justiça eleitoral; a descentralização política; a gratuitidade do ensino para todos até ao nível médio; e as disposições transitórias. Entretanto, o que mais pesou na nossa posição, foi a violação flagrante e grosseira de normas e princípios constitucionais antecipadamente consagrados.
Houve alguma tentativa de chegar-se a acordos? Estaria a UNITA disposta a ceder em alguns aspectos, quais?
Houve muitos acordos e cedências em questões universais, particularmente no quadro dos direitos fundamentais e da constituição económica. Isto a nível técnico apenas. Mas a Constituição é o estatuto jurídico do político. É nas questões políticas que deveria haver discussões mais profundas para se construírem consensos. Quando chegou o momento dessas discussões, a maioria do Partido/Estado alterou tempestivamente a metodologia e impôs um novo prazo para conclusão dos trabalhos. Não permitiu negociações das questões políticas, ao contrário do que, aliás, havia deixado entender. Se houvesse negociação, a UNITA cederia, certamente, em qualquer dos pontos menos na violação da lei, porque não se negoceia a violação da lei.
Comenta-se que a forma como se conduziu o processo decorreu, em parte, de culpa da UNITA por ter abandonado as discussões por ocasião do processo constitucional de 1998. Olhando para trás, o que pensa a respeito?
Os angolanos não devem ter memória curta. Devem estar mais atentos à lei que governa a República, devem distinguir factos de opiniões e de manipulações da informação, para não serem defraudados e não caucionarem, involuntariamente, os atentados à sua própria independência e dignidade. Trata-se agora de um golpe constitucional. Num golpe constitucional perpretado pelos representantes, a culpa primária é sempre dos golpistas, nunca do povo representado. A suspensão temporária que os partidos políticos de oposição impuseram ao processo constituinte em 2005, era um protesto que visava objectivos claros. Quando estes foram atingidos, estes partidos voltaram à Comissão Constitucional para a continuação dos trabalhos. Foi depois disso que, por razões agora esclarecidas, o MPLA interrompeu o processo constituinte. De todo o caso, a suspensão do processo constituinte no passado não justifica a sua subversão agora. De modo algum. Nem a subversão actual deve justificar qualquer subversão no futuro.
A UNITA sente-se, de certo modo, derrotada, ainda terá argumentos para contrapor a força da maioria do MPLA?
O golpe de Estado organizado pelo MPLA é um golpe à democracia e ao Estado de Direito. O golpista, tal como o ladrão, nunca ganha. Este regime está doente. O objectivo de insistirem em aprovar uma Constituição à margem da lei, não pode ser outro, senão o de continuarem a utilizar o Estado para fins privados. E queriam que a presença da UNITA legitimasse mais esta fraude, como quem faz branqueamento de capitais. Cumprimos o nosso dever. Conseguimos chamar a atenção de todos de que algo está mal. Foi uma vitória do povo angolano contra a tirania, entendida como a prática do totalitarismo legitimado democraticamente pelo princípio maioritário.
Essa falta de consenso, na aprovação da Constituição, representa para o processo de reconciliação nacional?
Não se trata de falta de consenso. Trata-se de um golpe de Estado constitucional organizado de forma subtil que muitos ditos analistas políticos também não conseguiram perceber. Felizmente sectores importantes da sociedade e os governos das principais democracias, perceberam, quer as motivações, quer o conteúdo e o alcance do golpe. O golpe fragiliza a democracia, fragiliza as instituições e consagra na consciência nacional a cultura da violação impune da Lei. É uma agressão séria contra Angola e contra os angolanos.
O pronunciamento, a pedido da UNITA, que se espera do Tribunal Constitucional poderá mudar alguma coisa mesmo? Estará a UNITA a ser ingénua a acreditar nessa possibilidade? O que fazer, caso o seu partido não fique satisfeito com a posição do TC?
O Tribunal Constitucional não se vai pronunciar a pedido da UNITA. A UNITA fez o pedido em Setembro. O Tribunal considerou importantes e pertinentes as questões levantadas, mas alegou não poder pronunciar-se por razões processuais. Aliás, esta atitude revela, mais uma vez, que desvios ou violações processuais podem anular a bondade de um processo. A consulta pedida pela UNITA devia ser feita antes da aprovação, sobre questões concretas, incluindo o impacto da não convocação da eleição presidencial em 2009 na ordem jurídico-constitucional vigente; a legitimidade da proposta C; a conformidade do sistema de governo proposto pelo MPLA aos limites materiais fixados ao exercício do poder constituinte. O Presidente da Assembleia Nacional não fez esta consulta durante o ano de 2009, porque certamente o Tribunal iria mandar convocar as eleições presidenciais. Não tenho dúvidas. E o regime, não queria isso, porque contrariava os objectivos do golpe de Estado. O envio ao Tribunal agora, não será certamente nos termos solicitados inicialmente pela UNITA.
Algumas pessoas disseram que a UNITA estava a ser “ingénua”, querendo com isso dizer que o Tribunal Constitucional não é independente e que não vai tomar uma posição em defesa da legalidade. Porém, nós precisávamos de esgotar todos os mecanismos institucionais de recurso. Entretanto, apreciamos esta observação porque denota mais uma razão para todos sermos coerentes connosco mesmos e termos a coragem de dizer “Basta,” exibirmos alguma dignidade e não permitir que se trate os angolanos como um rebanho de cordeiros, facilmente domesticados e formatados para confundir a vítima com o agressor.
O atentado contra a selecção do Togo trouxe novamente à baila o conflito em Cabinda. O que pensa a respeito?
Exprimimos a nossa posição em comunicado que tornamos público ontem, no quadro do Forum da Concertação Política. Consideramos que “o conflito em Cabinda tem raizes históricas, é complexo mas deve ser resolvido pacificamente através de um dialogo político, sério e inclusivo porque acredita que as reivindicações politicos e sociais do povo Mbinda podem ser solucionadas no quadro do regime democrático”. Por isso, “repudiamos e condenamos o uso da violência, do terror e das prisões arbitrárias como forma de solução do conflito”.
Como o seu partido, que elegeu um parlamentar nessa província, reage à onda de detenções a activistas cívicos no enclave?
As prisões não resolvem nada, porque a política de retaliar actos militares prendendo civis, só porque têm opiniões diferentes, é contraproducente. A prisão do Dr. Belchior, do Padre Tati e do Dr. Luemba significa a supressão da corrente dos defensores de direitos humanos em Cabinda e daqueles que são críticos ao memorando de entendimento. A sua detenção transforma-os em presos de consciência e poderá agudizar ainda mais as relações entre os diferentes povos de Angola e dificultar a resolução do caso Cabinda.
O seu mandato, a frente do partido, termina em Junho. Está pronto para deixar a presidência da UNITA?
A sua pergunta encerra uma motivação para o cargo de Presidente da UNITA que nos é estranha. A UNITA nasceu, cresceu e amadureceu na luta pela defesa dos princípios e valores mais nobres inerentes aos anseios mais profundos que encerram a dignidade da pessoa do Angolano. A sua história de cerca de 44 anos já provou que a UNITA é indestrutível; que a história de Angola será sempre influenciada pela UNITA. A maturidade da UNITA e a sua visão de futuro ultrapassam a idade de muitos analistas e políticos. Tal como no passado, estou certo que no futuro próximo e distante, os seus militantes saberão, em cada momento, escolher a sua Direcção colegial. Presidir a UNITA é uma decisão dos militantes da UNITA e, certamente, dos candidatos. Presidir a UNITA é servir, não é servir-se da UNITA. E Não se serve a UNITA apenas como Presidente. Todos os militantes da UNITA são educados e cultivados neste sentido. Não encaramos a presidência com a motivação errada.
Que UNITA deixará para o seu sucessor?
Uma UNITA combativa, defensora dos excluídos, democrata, e, acima de tudo, visionária. Uma UNITA que não capitula diante dos cifrões e da gangrena da corrupção institucionalizada. Uma UNITA que, mesmo que pareça remar contra a maré, como no passado, combate na defesa de princípios, pelo povo, e não por benesses dos dirigentes. Uma UNITA moderna, caracterizada pela sua identidade histórica e fiel à causa do povo.