20/01/2010

CRÓNICA DA TERRA - QUINTAS DE DEBATE

Embora não tivéssemos tido a possibilidade de, na devida altura, ter publicado o texto de apresentação de Fernando Pacheco aquando da sua passagem pelo QUINTAS DE DEBATE, aproveitamos fazê-lo aqui, através da transcrição da CRÓNICA DA TERRA - Quintas de debate, publicado em ÁFRICA21 de Dezembro 2009/Janeiro 2010.

Aproveitamos mais uma vez para agradecer a amabilidade do Fernando Pacheco por nos ter facilitado o scanner deste texto:

Que melhor indicador haverá sobre o enriquecimento ilícito do que o secretismo que envolve as privatizações e os grandes negócios em quase todas os sectores da economia, desde a agricultura às comunicações e aos bancos, não esquecendo o imobiliário e o turismo?

A ASSOCIAÇÃO OMUNGA (omunga é uma palavra em umbundo que significa juntar forças, no sentido de estarmos juntos) é uma das mais aguerridas organizações da sociedade civil angolana. Tem igualmente sobre outras a simpática vantagem de a sua sede ser no Lobito. Num país em que quase tudo o que acontece só tem valor quando acontece em Luanda, onde vivem as «pessoas de verdade» - incluindo aqueles que juravam até há poucos anos que a sua missão era estar junto ao povo do país profundo -, este é um facto de enaltecer. É verdade que o ambiente de Benguela favorece. Esta é, depois de Luanda, a província onde a sociedade civil angolana é mais dinâmica e a única em que ela tem expressão nos municípios, onde o diálogo, nem sempre fácil, com as instituições do Estado é mais intenso.

A Omunga organiza desde há um ano debates regulares, quinta-feira sim, quinta-feira não, sobre temas pertinentes da actualidade cívica, política e social, animados por políticos, magistrados, académicos e líderes da sociedade civil.

Depois de vários adiamentos, em Outubro também me coube a vez. Sentia-me obrigado a fazê-lo porque, de certo modo, a Omunga nasceu da ADRA nos anos 90, como várias outras organizações benguelenses. Escolhi como tema a situação dos angolanos um ano depois das eleições e da entrada em função do novo Governo. Esta crónica resume o teor da minha introdução ao debate.

Jogo nulo

Quais eram as expectativas dos angolanos antes das eleições? Acho que se poderiam sintetizar na paz e estabilidade social, solução dos problemas do povo - o que em Angola significa sobretudo os problemas dos pobres e excluídos -, aumento do emprego, continuação da construção e reconstrução de infra-estruturas, aprofundamento das liberdades, respeito pelos direitos dos cidadãos, acesso à informação. Mudança foi, pois, uma palavra-chave naquele momento. Em minha opinião, o MPLA soube fazer bem a leitura de tais expectativas e, aproveitando a sua posição privilegiada em relação à gestão e aproveitamento dos bens públicos, conseguiu uma vitória retumbante.

O povo angolano acreditou na possibilidade de satisfação dessas expectativas a curto prazo com o MPLA.

Um ano depois é legítimo fazer um balanço agora, ou esperar até ao final da legislatura? Será que as expectativas foram satisfeitas e que a vida dos angolanos melhorou?

A avaliação regular de planos, programas e projectos não é uma prática usual em Angola. Por isso várias vozes se manifestaram dizendo que ainda é cedo para uma avaliação. Discordo em absoluto. As avaliações, principalmente as independentes, são cruciais para mostrarem as tendências e proporcionarem possíveis medidas correctivas. Esta é uma prática elementar em todo o mundo. Foi o que pretendi com a minha intervenção.

Apesar da continuidade da dinâmica do «canteiro de obras», desacelerada por causa da diminuição das receitas do petróleo - o que mostra que o crescimento da economia não-petrolífera ainda não tem expressão, ao contrário do que diz a versão oficial -, o país, globalmente falando, não está melhor. Um participante «obrigou-me» a atribuir uma nota classificatória entre zero e vinte para o desempenho do Governo e eu decidi-me pelo dez, o número que o MPLA, utilizando a metáfora do futebol, exaltou para a sua estratégia ganhadora durante a campanha eleitoral. Acontece que o «dez» não tem tido ao longo deste ano um desempenho adequado às expectativas criadas e sabe-se que, no futebol, quando o «dez» falha dificilmente a equipa vence a partida. Daí que o resultado mais justo do jogo me pareça um nulo, embora o campeonato ainda esteja longe do fim.

Não será de estranhar, pois, que largos segmentos da população se mostrem decepcionados com o desempenho do Governo.

De novo, este quase só trouxe o número de mulheres. De resto, manteve-se o número exagerado de ministros, a sua atitude gastadora, a promiscuidade entre gestão pública e negócios, a falta de prioridade efectiva ao desenvolvimento institucional e dos recursos humanos, enfim, a ausência de uma preocupação com a ética. A equipa económica, em geral, piorou o seu desempenho.

A comunicação social pública continua a reflectir apenas os interesses do Governo e não os públicos. Os serviços prestados aos cidadãos - fundamentais para o combate à pobreza — não melhoraram de forma significativa e em alguns casos até regrediram. O abastecimento de água e energia e as comunicações por telemóvel e internet, por exemplo, estão piores para largos sectores da população.

O que mais preocupa são as políticas governamentais e as práticas dos governantes. A acção de maior vulto está a ser a implementação do projecto de construção de um milhão de casas, de grande alcance político e capaz de desencadear um enorme surto de crescimento, mas este primeiro ano de execução mostra bem como ele reflecte, como noutros sectores, as fragilidades governamentais. Improvisação, descoordenação, e falta de rigor são práticas notórias. Os projectos sociais estão quase sempre em segundo plano em relação aos condomínios e prédios de luxo. Para quem tenha dúvidas, aqui estará uma tendência para o aumento da desigualdade entre ricos e pobres.

Estado, oposição e sociedade civil

Isto tem a ver com a concepção de Estado paternalista e clientelar predominante. Tenho denunciado que a máxima de Agostinho Neto «o mais importante é resolver os problemas do povo» está desajustada. Há 30 anos, num quadro de economia administrativamente centralizada, fazia sentido esperar que o Estado tivesse a obrigação de resolver os problemas do povo. Actualmente, quando se pretende um Estado democrático e uma economia de mercado - a componente social desta parece ter sido metida na gaveta - o mais importante para o poder de Estado já não pode ser «resolver os problemas do povo», mas ajudar, no sentido de facilitar, criando um ambiente mais favorável, o povo a resolver os seus próprios problemas. Ao contrário do que se possa pensar, isto não tem nada a ver com uma suposta defesa das teses neoliberais com as quais nunca me identifiquei. O que me preocupa é o reconhecimento da importância da cidadania.

A meu ver, têm de ser os próprios cidadãos a assumir, individualmente ou, preferencialmente, através de acções colectivas, as soluções dos seus problemas. É esta participação dos cidadãos e das suas organizações que dá conteúdo à construção de uma cultura democrática e, consequentemente, de um Estado democrático, do ponto de vista político, social e económico, o que, todos sabemos, é ainda um sonho. Doutra forma, os cidadãos permanecerão eternamente órfãos do Estado, com uns (poucos) a beneficiarem cada vez mais das receitas do petróleo, enquanto outros (muitos) agradecem os restos com que são contemplados.

Poderemos estar até a fazer crescer e a fazer crer que estamos a modernizar o pais, mas poderemos, ao mesmo tempo, estar a criar condições para a edificação de um Estado autoritário e paternalista, que poderá vir a cair na tentação de evoluir para o totalitarismo.

As políticas e práticas governamentais actuais sugerem também uma ruptura substancial com a ética. Alguns analistas dizem que não há estatísticas ou outros indicadores mensuráveis, mas perante as evidências na rua e na televisão eles são desnecessários para se concluir que o fosso entre ricos e pobres está a aumentar de forma inquietante e pode prenunciar desastres sociais. Que melhor indicador haverá sobre o enriquecimento ilícito do que o secretismo que envolve as privatizações e os grandes negócios em quase todos os sectores da economia, desde a agricultura às comunicações e aos bancos, não esquecendo o imobiliário e o turismo? Ou a apresentação de pessoas, que sempre estiveram ligadas a cargos públicos, «derepentemente» transformadas em "empresários de sucesso" da chamada Nova Angola sem uma explicação lógica de onde saiu o dinheiro de que desfrutam?

Finalmente, uma palavra para a oposição política e outra para a sociedade civil. Os partidos poderão invocar as razões que quiserem, mas a percepção dos cidadãos é a de que eles, sem excepção, não revelam capacidade para influenciar o curso dos acontecimentos. A sociedade civil, ao colo da qual certos partidos querem andar, continua a apresentar fragilidades, principalmente em termos de visão e de sentido político, mas tem registado alguns avanços. O aproveitamento de espaços proporcionados pela lei está a permitir dinâmicas de diálogo em alguns municípios e o aparecimento de redes geográficas de articulação, como o processo das conferências da sociedade civil a vários níveis estão a demonstrar. A III Conferência Nacional realizada em Benguela entre 17 e 19 de Novembro é uma mostra de que o caminho para uma sociedade civil mais forte está a ser percorrido.

As quintas de debate são uma oportunidade para os cidadãos contribuírem para uma Angola melhor, ainda que de forma muito modesta. Fico triste, no entanto, por não ver a comunicação social, nem a academia, nem a maior parte dos intelectuais que deveriam contribuir para uma verdadeira Nova Angola, a darem a este tipo de iniciativas a importância que ele merece.

PS: Lamento ter de manifestar o meu desacordo pela forma como o Prémio Nacional de Literatura não foi atribuído a Viriato da Cruz e a minha decepção pelo facto de o meu amigo João Melo o ter aceite. Outras atitudes, num e noutro caso, contribuiriam melhor para a tal Nova Angola que pretendemos.

Fernando Pacheco

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