09/06/2010

CAUSAS E EFEITOS DA CORRUPÇÃO - Filomeno Vieira Lopes

(Nota. Este extracto foi escrito para a Conferência sobre a corrupção em angola promovida em 1995 pelo NDI. Apresenta-se aqui apenas os dois primeiros capítulos)


Introdução
A abertura de mercado não eliminou as fontes de corrupção
Noção plural de corrupção ponto de vista multilateral, encontro com o senso comum.

O tema, de grande interesse nacional vem merecendo abordagens de ilustres palestrantes sob vários ângulos e pontos de vista, alguns dos quais alicerçados em pesquisas fundamentais e, outros, ricos em inspecção histórica e jurídica. . A visão do conceito já não é pois novidade e não é necessário voltar a defini-lo, dado que a sua definição jurídica é restrictiva, abordaremos o termo tendo em vista a síntese entre as várias ciências o que nos aproxima mais do senso popular, dando uma ideia mais clara dos malefícios que tal prática comporta para a nossa sociedade.

Assim, não partiremos também dum ponto de vista específico, nem cabe esgotar nesse pronunciamento as variegadas formas que o fenómeno assume entre nós, assunto já batido por diversas vezes. A tentativa é de encontrar nas formas mais gerais que têm condicionado a nossa vida, nas várias fases de opções económicas e políticas, nas formas estruturantes da nossa sociedade, nas atitudes e comportamentos, as causas da corrupção. Delas, impossível de descrever em todos os seus aspectos, derivam efeitos. Efeitos, que se transformam, numa relação dialéctica, em novas causas, tornando-o um fenómeno circular sem porta de saída e com capacidade de adaptação a novas conjunturas. Sem porta de saída, pois, e sem antecipar os resultados, há uma unidade entre o factor político e o económico repousados numa esteira sócio-cultural, ardilosamente entrançada para propiciar a existência e, sobretudo, a dimensão do fenómeno, corrupção.

Terminaremos, balanceando as suas consequências no OGE e, em particular, na magnitude da dívida externa e na problemática da sua solução.

2. Causas

Sob a égide do Ministério da Justiça uma equipa multidisciplinar de Peritos procedeu em Novembro de 1990, antes dos Acordos de Paz de Bicesse, a um “Estudo sobre o fenómeno da Corrupção” acompanhado de “Proposta de Projecto de Acção do Governo”. Nesse estudo focaliza-se a génese da corrupção em 4 causas de fundo, a saber: a forma de chegada ao poder em 1975; o vazio administrativo resultante da fuga de quadros experimentados da função pública; o retorno ao país de compatriotas com vícios de corrupção; o transtorno espiritual devido à guerra.

O estudo ao analisar as principais causas da corrupção em Angola, no plano da sociedade em geral, do aparelho administrativo e partidário e das empresas públicas, conclui pelas seguintes, de acordo com o seu grau de importância: carência de bens e serviços de primeira necessidade; falta de estímulo; falta de dignificação do salário; falta de dignificação da carreira profissional; má qualidade de quadros; promoções profissionais injustas; debilidade funcional das estruturas do Estado; guerra que assola e devassa o país.

O Relatório aponta ainda que as formas de corrupção na sociedade em geral “vê-se no ambiente propício à ociosidade, vida fácil, ao suborno, à busca de meios de subsistência por qualquer processo – roubo, furto, burla, prostituição, etc.”- enquanto no aparelho administrativo do Estado advoga que os funcionários públicos “criam dificuldades para venderem facilidades”, aceitam ofertas para agilização de actos lícitos ou cometimento de actos ilícitos, sujeitam-se a suborno, desfalcam os cofres do estado, esbanjam os recursos materiais e procedem a fraudes. Estas práticas estendem-se por todos os Ministérios, incluindo os Órgãos de Segurança e Ordem Interna, Forças Armadas, o próprio Ministério da Justiça e também o Partido Único de então, onde predominam os “esquemas”, “cunhas” e “clientelas político-privativas”. O relatório deplora assim o “clima de venalidade generalizada”.

Nas empresas públicas as formas privilegiadas registam o peculato, a apropriação de comissões, o nepotismo, o compadrio, a sobrefacturação, compras fantasmas, etc.

As formas detectadas são assim resumidas, na generalidade:
abuso de poder; nepotismo e amiguismo; tráfico de influências; fraudulenta gestão económico-financeira; suborno generalizado; esquemas; desvio e roubos de bens do estado; perversão da moral social; preferência por cooperantes; conivência em contractos mal feitos.
Quais são pois as situações estruturantes, objectivas, que possibilitam estas causas, formas e a própria magnitude do fenómeno corrupção em Angola após a independência?

2.1 Do Modelo Económico as Bases Organizacionais da Corrupção

“Seja onde for que exista um poder muito concentrado e uma pouca responsabilidade, há uma longa lista de saques (pilhagens) e lucros” In Corrupção 96, Newsweek

O sistema económico angolano adoptou, logo após a independência, um modelo concentracionista. A monopolização da produção (com destaque para a indústria) , do comércio interno e externo foi um traço inegável das opções económicas numa altura em que o amadurecimento das forças produtivas, nele compreendido o grau de domínio da economia pelos angolanos, eventualmente, não aconselhavam tal passo.

A concentração económica esteve a par da absolutização política, da apropriação exclusiva da esfera do estado pelo partido do poder. Riqueza, conhecimento e força estavam inextricavelmente unidos num só grupo. Essa concentração, do ponto de vista económico, introduziu ineficácias no sistema produtivo pois foi acompanhada pela destruição da indústria ligeira, parte da qual, foi-se progressivamente acoplando a cada monopólio.

Assim, num dado momento numa empresa havia uma produção principal e um conjunto de produções acessórias capazes de a tornar operacional e sem recurso externo na cadeia de produção nacional. Progressivamente, foi-se acentuando a integração com certos serviços e mesmo actividades que concorriam não já para a prossecução central da produção mas para os interesses e estabilidade dos próprios empregados. Uma panificadora poderia ter, simultaneamente, um parque de reparação auto, outro de obras de construção civil, etc. para satisfação global das necessidades gerais. A empresa era quase um mundo completo, constituído de várias unidades produtivas. O mercado reduzia-se a quase nada ou internalizava-se no próprio monopólio. O que lhe faltasse adquiria sobretudo por troca directa de produtos ou de serviços, verificando-se mesmo em épocas de crise (e face a desmonetarização da economia devido a degradação do Kuanza), chantagens entre gestores: “se não me dás o que eu quero eu também não te dou o que tenho”. Essa atitude tornou-se generalizada a toda a economia. Os bens reais tinham uma grande força, bem como o nível de relações entre gestores que, por força de satisfazer a própria empresa era obrigado a entrar em esquemas, em sistemas de compensações que foram progressivamente degenerando para sistemas de compadrio e corrupção. Se uma empresa que possui cervejas quisesse ter casas para as suas necessidades ou para os seus empregados formulava um contracto com a habitação para adquiri-las e, em contrapartida, “cedia” um x n° de caixas de cerveja.. Concomitantemente o jogo de ofertas recíprocas para criar lobbies para a troca de produtos ou serviços assumiu igualmente forma predominante na economia. Concerteza que o que cabia aos chefes era a parte de leão.

O facto da empresa aglutinar tudo e proceder a uma distribuição administrativa das suas produções facilitou a ausência de fronteira entre aquilo que era empresarial público e do que era apropriação privada derivada do produto do trabalho dos gestores..

O salário, mesmo o do Director, não só não era suficiente como não tinha qualquer papel válido, real. Nessas circunstancias o Director confundia a sua empresa com a sua própria casa indo buscar directamente à empresa tudo de quanto carecia e estendia esse privilégio a sua clientela. Utilizava igualmente esse poder para tráfico de influências, subornos, etc, alguns com fundamento em negócios da própria empresa.

Portanto, no início, não era a forma pecuniária que intermediava o fenómeno em análise, era o bem real ou o trabalho - um bem abstracto - através da utilização abusiva dos empregados para trabalhos privados. Trata-se aqui dum claro desvios de recursos, da utilização indevida de recursos não próprios ou apropriados para influenciar terceiros, embora dissimulado, encoberto pela forma de gestão claramente justificada no âmbito do sistema.

A concentração montou, por seu turno, uma burocracia político-administrativa-militar em que as pessoas estavam divididas por castas. O exemplo disso, relembremos, eram os cartões de abastecimento. A posição do indivíduo determinava o tipo de cartão ou cartões a que tinha acesso. A corrida assim à categoria de “responsável” para entrar no mundo dos aliviados era então grande. Funda-se aí a deturpação da relação entre técnicos e responsáveis e as bases duma indevida competição com repercussões negativas na economia.

Esse monopólio público era estruturado administrativamente pelo aparelho do estado. Este não orientava a actividade económica do ramo. Dirigia o conjunto das empresas públicas como se fosse o seu Gestor Principal. A partir daí ministros e secretários de estado, bem como o aparelho superior se abasteciam normalmente. Cada ministério que dominasse um certo sector produtivo era praticamente o seu dono. Este aspecto pode ser francamente relembrado se nos recordarmos das célebres requisições, através das quais o sistema poderia alocar bens as pessoas. O poder de requisição é do ministro que rege as empresas afectas. As trocas no aparelho de estado, as influências na base do poder de cada um, são assim evidentes. É fácil raciocinar que tal sistema facilitou a penetração do vírus denominado corrupção.

Mas onde é que se situa a grande massa de trabalhadores nesse esquema já que não detém o poder de requisição, nem pode utilizar abusivamente dos bens da empresa. A resposta de sistema foi o chamado autoconsumo. Era a parte do “salário” em espécie da sua própria produção. O mecanismo do autoconsumo criou um aparente sistema de cumplicidades entre trabalhadores e gestores tornando invisível a fronteira entre o bem empresarial e o privado ao mesmo tempo que permitia um excedente deste produto ao trabalhador que o usava para troca por produtos ou compra de favores.

Aqui chegados, dirão os economistas, há um excedente mas isso não prova a existência da corrupção, pois trata-se duma troca em bases iguais, apesar de tal situação criar um mercado próprio sem equilíbrio do valor incorporado no bem. Se o autoconsumo era legítimo, como introduzi-lo no sector burocrático (Administração Central, Bancos, Finanças) ou em trabalhos que não criam bens visíveis? Como, por exemplo, na transportação?

É na relação que se cria entre detentores de produtos e de serviços que a corrupção se estabelece. A cobertura consensual (legitimação) é o direito de equidade para os trabalhadores do sector administrativo ou de “produção” não visível, uma vez que todos são empregados do Estado. Contudo, torna-se difícil encontrar aqui um estatuto legal. Desta feita, o funcionário público administrativo tem que arranjar uma forma de tornar mais rentável o seu trabalho, o empregado motorista precisa de ficar com o transporte e fazer a sua “candonga”, enfim, mil e uma habilidades para perequar os rendimentos e enfrentar o nível de vida.

Concerteza que aqueles que se encontram no topo têm mais vantagem sobre os demais, pois o seu autoconsumo é maior. O instituto do autoconsumo, paralelamente ao poder de requisição, surge assim como um percursor do sistema de corrupção ao tentar resolver a contradição que ele próprio encerra, seja, a legitimidade em generalizar uma prática autorizada aos trabalhadores do sector produtivo aos dos demais sectores.

Já perscrutamos, por análise de verso, que a dimensão do salário joga aqui um papel importante. Falaremos um pouco mais sobre isso adiante. A concentração económica e a departamentalização ministerial do sector económico facilitaram o empolamento de custos das empresas públicas por parte de ministros e altos funcionários de estado para satisfação das suas próprias necessidades. Mas, concomitantemente, outras formas foram contempladas nomeadamente o acesso a Comissões (usufruto proibido por lei, inicialmente) por homologação de concursos, a realização de obras de construção em casas próprias inseridas na facturação global de projectos públicos, a aquisição de viaturas para uso privado englobados em pacotes de negócios públicos, o usufruto indevido de dinheiro para tratamento no exterior, o pagamento de estudos e outras facilidades através de fundos não contabilizados, a constituição de empresas fantasmas no exterior, sem controlo razoável da própria administração central, etc. Outro aspecto decorrente desse período é a utilização de cooperantes com salários exagerados sendo uma parte dele para o contratante. .
2.2 Falsidade do Plano. A Arbitrariedade e Descricionaridade

Se a estruturação geral do sistema criou a condição básica para a corrupção há outras componentes a si associadas que permitiram o seu desenvolvimento ou ambiente propiciador, entre as quais podemos citar o sistema de planificação com um conjunto rígido de leis, incapaz de ser cumprido, integrando, ademais, sanções rigorosas que não tinham viabilidade de serem aplicadas. A planificação introduziu a ideia da irresponsabilidade do gestor, uma vez que sendo determinada de cima e com instrumentos de decisão de cima, este tinha sempre desculpas para não realizar rendimentos, devido ao excesso de custos resultantes de desvios e aplicação indevida. Outro aspecto é a desorganização empresarial e a ausência de contabilidade nas empresas (do que sobressai a evidência da falsidade do plano).
Finalmente, o secretismo (ausência de transparência) existente na administração e nas empresas públicas que não permite a terceiros seguirem minimamente o que se passa em certos casulos. Nenhuma empresa pública publica sequer as suas contas.

A forma de poder implícita no modelo de gestão (copiado mecanicamente da forma de gestão política) permitiu igualmente um nível exacerbado de descricionaridade e arbítrio por parte dos gestores que através do uso e abuso do poder estavam avontade para empreenderem a delapidação do erário público, via corrupção de forma extensiva.

Resulta assim como conclusão desta primeira parte que a estatização da economia e o modelo de gestão adoptado facilitou a apropriação indevida de riqueza, impulsionado pelo modelo de bem estar da classe dominante e utilizando um incremental ao baixo salário monetarizado, através do autoconsumo para criar um sistema generalizado de cumplicidades. Esta apropriação através do estado, traduz o capitalismo de estado então emergente com rasgos populistas (sistemas de cumplicidades) sob a designação socialista caracterizada, na altura pelo senso comum, como esquemática. Tal situação foi facilitada pela monopolização do poder político traduzindo falta de abertura social em que o enquadramento da sociedade impedia eficácia na verdadeira denúncia de casos, apenas consentidos em resultado de lutas intestinas de lideranças do partido no poder.

Atesta bem, por consequência, a definição de Robert Klitgard sobre corrupção “É igual ao monopólio, mais descricionaridade dos funcionários menos transparência”. Para quem detém possibilidades de poder sobrepõe o interesse privado acima do interesse público na lida com o bem público.

Transição para o sistema liberal. Necessidade da consolidação da camada elitista e a promiscuidade entre o político e o económico

Criadas as bases (recordemos as conclusões do Relatório Oficial de 1990) é pois perceptível a intensificação desse fenómeno quando o país adere a liberalização económica e política, pois trata-se apenas de adequar a apetência a evolução da situação, incrementando consequentemente o aspecto da sua monetarização. O rasgo fundamental centra-se não já na apropriação, enquanto usufruto, de bens mas na transferência de propriedade e na apropriação de capital financeiro. O problema em si não engendra corrupção. Os processos adoptados é que, face a evolução estruturalizante anterior, engendram necessariamente a corrupção. Os fenómenos verificados recentemente constatam a escolha arbitrária dos novos agentes económicos, a venda de propriedade do estado a preços irrisórios, as concessões de empresas atribuídas a antigos gestores associados a políticos, a passagem directa ou por ajuste directo sem concurso de bens do estado para particulares, a apropriação de massas indevidas de capital, os esquemas resultantes do acesso ao cambio oficial, só pode ser exequível através da montagem do mais amplo sistema de corrupção e de tráfico de influências.

Naturalmente que o desenvolvimento deste estado de coisas compreendeu também motivações psicológicas que os detentores do poder apresentaram. O medo de perder o sistema de privilégios, apresentando como pretexto a ideia de que os do “aparelho” tinham dado tudo à pátria e não tinham, até então, acumulado nada (o que é desmentido pelo relatório sobre a corrupção realizado em 1990!), condicionou uma verdadeira e transparente abertura ao mercado e restringiu-a, na generalidade, à protecção de interesses seleccionados. Os que, com espírito empreendedor, ousaram “entrar” viram-se confrontados com uma série de bloqueamentos administrativos só ultrapassáveis através de recompensas diversas, diga-se, corrupção, recorrendo assim a mecanismos informais, mas com maior grau de certeza e menor de risco.

Tais bloqueios intencionais, aproveitando as debilidades de organização que os próprios agentes incentivavam, provocam um excessivo grau de incerteza no sistema formal, onde se observa a uma ausência de mecanismos de cumprimento contratual. Basta analisar as dificuldades então patentes no levantamento de fundos depositados no banco necessitando de correspondente “comissão” para o efeito, o pagamento por fora para priorizar a ordem de saque, a percentagem para libertar a bolsa de estudo, o pagamento a rede de trabalhadores dos Recursos Humanos de várias empresas para se obter um emprego, etc. O ponto alto dessa situação está na célebre percentagem (alguns Governadores de Província passaram a ser designados de 30%) que permitia a entidade que detinha a prerrogativa de conceder a licença ou viabilizar a empresa, a qualidade de sócio. Esta associação marca uma boa parte do tecido empresarial actual, só sendo permissível pelo facto da abertura política e, consequentemente, o estado de direito estar exclusivamente dependente das forças do poder. Tal situação, é claro, estimula ainda mais o tráfico de influência pois o desenvolvimento empresarial está ainda dependente de decisões político-administrativas para as quais os decisores do poder são imprescindíveis, porque colocados nos lugares-chave. A economia mantém-se desta feita estreitamente ligada à política quer ao nível das decisões quer ao nível dos próprios agentes.

No limite - e é aí onde a corrupção se amarra e se torna imprescindível – trata-se da promiscuidade entre o político e o económico, é a confusão de interesses, entre proprietário e administrativo, da relação entre o sujeito e o objecto da lei. O apagar a nitidez de fronteiras obscurecendo as relações que se estabelecem, não permitindo que as leis joguem o seu real papel, nem que hajam regulamentos que impeçam os negócios ilícitos, nem forças internas que a combatam.

A contextualização política: a questão do partido- estado a degradação da relação de cidadania e a quebra do judiciário

Entramos pois na esfera do político. A organização do poder político na base do partido único favoreceu o desenvolvimento da corrupção. O traço que mais permitiu isto foi a solidariedade partidária na base da filosofia de incorruptibilidade dos homens de vanguarda. É na esfera da justificação que o factor político mais interfere encobrindo a sua denúncia (quando descoberta era um assunto entre camaradas) que, por sua vez, se transforma em causa do desenvolvimento do sistema de corrupção. A protecção do fenómeno por via ideológica deve juntar-se a impunidade do “crime” sempre que detectado. É a cumplicidade acobertada pelo sistema político consubstanciada no facto de não existir fronteiras acentuadas entre o partido e o estado, da livre transferência de bens, que permite a constituição da base material da corrupção. De notar, face a importância superior do partido em relação ao estado, que as formas ilícitas (havendo até algumas legais mas estimulantes também da corrupção) utilizadas para drenar dinheiro para o partido eram tidas como bom desempenho da parte de quem as praticava. A autoridade do Partido sobre o estado favoreceu o desenvolvimento de esquemas, da cunha, etc, na sua qualidade de entidade protectora. A situação assume tal envergadura que o próprio Relatório sobre a corrupção protege os dirigentes do Partido Único, na sua maioria dirigentes do próprio estado e das suas estruturas empresariais. Ao propôr medidas para avaliação futura dos bens patrimoniais para os titulares dos cargos públicos o Relatório defende “Dependerá do Partido aproveitar ou não a sugestão em relação aos seus membros com funções de chefia” . (pág. 41) tal era o seu posicionamento acima da Lei.

A abertura de mercado não eliminou as fontes de corrupção provocadas pela dinâmica do partido-estado - o estado erigido na base das necessidades estritamente partidárias - adaptadas agora ao contexto multipartidário e da emergência duma sociedade civil organizada.

Daí a abertura dum novo mercado de corrupção: a chamada corrupção política nela integrada a corrupção das lideranças sociais e dos veículadores de informação. A corrupção política (aparte aquela que derivou do jogo de concorrência no interior do partido único) começou com o processo de democratização política. Corrupção no sistema de inscrição de partidos, corrupção para conquistar facilidades administrativas face a primeira lei da legalização partidária que “exigia” objectivamente este comportamento face a pesada estruturação, ineficiência e boicote da Administração Pública. Chantagem e corrupção para obter favores políticos de partidos que detinham informações lesivas ao partido no poder, bem como de lideranças sociais (a sociedade civil começava-se a libertar-se das correias de transmissão então existentes) e sobre os jornalistas. O auge dessa nova forma foi atingido no jogo de alianças políticas que se pretendeu estabelecer, untadas com dinheiro e garantias políticas de futuro, na altura do pleito eleitoral, com sérias repercussões no desempenho actual da oposição política. Chegou-se a desviar linhas de crédito do Estado (Ministério do Plano) para financiamento a campanhas eleitorais de partidos políticos com constituição de empresas privadas para dar cobertura a canalização destes dinheiros. Foram afastados de lugares de decisão empresarial todos aqueles que não davam confiança de favorecer negócios ilícitos numa altura tão crucial para a manutenção do poder. E, também, corrupção de lideranças políticas estrangeiras, através de ofertas oficiais de “barra de ouro” e “diamante”.

Presentemente, o sistema é completado com a perspectiva de se criar uma classe política, não pela via da luta política aberta, dum código ético de conduta e duma clara e transparente percepção de rendimentos mas através de facilidades (veja-se o carácter de algumas mordomias, as doações em dólares no final do ano, outras muitas facilidades que a opinião pública desconhece, etc). O fim é permitir um relativo equilíbrio entre os políticos, do poder e da oposição, que os torne numa elite graças a cumplicidade e, conjuntamente, percam sensibilidade as reivindicações dos cidadãos. No Senegal, por exemplo, os deputados recebiam um envelope particular. Poder e oposição encobriam esta relação pecuniária ilegítima e justificada pelo facto do salário oficial ser baixo (O salário baixo oficial é para justificar o baixo salário dos funcionários públicos). Até que um novo deputado da oposição, o líder do And-Dief, Landing Savané, ter denunciado isto abertamente, o que lhe valeu a prisão. O sistema entre nós é mais sofisticado e não é fixo, exige uma gestão contínua e pontual. É na base de mordomias e facilidades que variam em função do bom comportamento dos deputados da oposição.

Evidentemente que entre nós o acesso as coisas e aos direitos é sempre problemático. Quando um direito (e conhecer os direitos não é fácil) é consentido por lei ou despacho há restrições justificadas pela falta de fundos e, nestas circunstancias, a decisão recai sobre o chefe (alto grau de descricionaridade). A característica da essência administrativa - a impessoalidade - fica automaticamente condicionada. O chefe já se sabe quem é. Não é estranho para ninguém que este sistema se desenvolve meteoricamente quando estamos perante a conquista de elementos de partidos tidos como “inimigos”: é o preço a pagar. Obviamente, tais fundos não têm ao certo origens próprias, do partido corruptor: são fundos públicos. Lesada a moral, depende da chantagem recíproca entre o agente passivo e o activo o incremento da relação de corrupção. Esta portanto assume uma dinâmica difícil de ser rompida, com um trato de natureza perigosa. Esta relação estabelece-se em fonte incessante de corrupção.

Se ao predomínio do político acoplarmos o judicial, na lógica da não independência de facto entre os poderes, encontramos aí outra fonte de estímulo para a corrupção face ao laxismo da função judiciária e da impunidade dos agentes e gente corrompida que amedronta todos aqueles que estão de posse de provas ou evidências. Olhemos para a complacência dos sinais exteriores de riqueza, passíveis de serem processados por crime por corrupção. Concentremo-nos na basta informação já disponível em vários órgãos da comunicação social.

De forma dissimulada, é evidente que as pessoas do judicial que assim hajam sejam recompensadas (isto, por sua vez, é corrupção), quer monetariamente, quer na ascensão a cargos de carreira, quer por outras facilidade porque a vida normal entre nós é muito difícil. Desmoraliza-se assim um importante bastião da luta contra a corrupção e transforma-se a sua actuação permissiva, igualmente, em causa da própria corrupção.

Não se deve descurar o estímulo externo, aproveitando a aprendizagem dos novos governantes às regras do comércio internacional. Os estímulos externos romperam com as barreiras rígidas anti-corrupção no início da Primeira República, como a legislação que negava o recebimento das Comissões. Os estrangeiros, altivos, informavam aos angolanos que esta prática era normal. A intenção, a par do negócio, era partir o verniz socializante. Na nova fase o mais importante era liberalizar para se romper estruturalmente com o anterior sistema, independentemente da forma como a mesma se poderia processar, sem regras, sem práticas sãs, etc. O principal era criar as condições duma melhor integração de Angola no circuito da economia ocidental e impedir qualquer intenção revivalista sovietista. Esse interesse, tomado como fundamental, criou circuitos de intensificação da relação de corrupção com o Exterior.


Vistas assim as coisas, Angola, no actual contexto, transformou-se num país derrotado pela corrupção sendo esta, por sua vez, “ um sintoma da fraqueza do sistema político, social, legal e económico” do país. In Controlling Corruption –A Parlamentarian’s Handbook-pg 7

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